A LEI DO BRANQUEAMENTO, PERDÃO, DO REPATRIAMENTO DE CAPITAIS
Foi épico o combate que a UNITA travou na Assembleia acerca da questão do repatriamento dos capitais. Adalberto da Costa Júnior, Mihaela Webba e José Pedro Kachiungo, entre outros, bateram-se com galhardia e empenho na discussão, fazendo renascer uma oposição que andava adormecida desde o Verão. Provavelmente, esta será a única vantagem da aprovação da proposta de Lei de Repatriamento de Recursos Financeiros apresentada pelo MPLA.
Como esperado, as posições da UNITA foram derrotadas na Assembleia, tendo-se aprovado a proposta de lei avançada pelo MPLA, sem qualquer cedência. Já tivemos oportunidade de criticar a essência dessa proposta várias vezes (ver aqui, aqui e aqui).
Em termos estruturais, a lei agora aprovada tem várias deficiências.
Em primeiro lugar, concede uma amnistia geral a todos os desmandos financeiros – e foram imensos – ocorridos em Angola. Ora, não se verificando qualquer reestruturação no Estado angolano, nem existindo uma sociedade realmente democrática e transparente, esta amnistia não faz sentido. Assim, sozinha, a amnistia não passa de mais uma “vicentada”, isto é, uma forma de o poder soberano do Estado proteger os interesses privados (e corruptos). O que está a ser montado pelo MPLA de João Lourenço é um sistema legal de protecção do “roubo” efectuado no país desde, pelo menos, 2002. Foi isso mesmo que José Pedro Kachiungo afirmou com veemência ontem na Assembleia Nacional, e com toda a razão.
A ciência e a técnica fiscais ensinam que este tipo de amnistias tem de ser acompanhado por medidas abrangentes, designadamente de correcção e coacção dos comportamentos violadores da lei. E da ciência política sabemos que as amnistias globais fazem parte de processos de transição acordados entre as várias forças políticas e sociais. Nada disto ocorreu.
A segunda deficiência estrutural da nova lei resulta do desequilíbrio entre os seus capítulos II e III. O capítulo II refere-se ao repatriamento voluntário, e é bastante exaustivo, elencando os vários aspectos da amnistia (artigo 8.º), os procedimentos a seguir (artigo 6.º), o dever de sigilo (artigo 7.º). Já o capítulo III, atinente ao repatriamento coercivo, é um conjunto de banalidades e intenções programáticas sem qualquer especificidade concretizadora. Vê-se perfeitamente que o legislador do MPLA aposta forte no repatriamento voluntário, e não quer criar mecanismos efectivos para o repatriamento coercivo.
Este aspecto leva-nos à terceira deficiência estrutural da legislação, que se prende com a motivação. Que motivos poderão levar os detentores de capitais no estrangeiro a repatriá-los para Angola? A amnistia criminal e fiscal? Caso estivesse em curso um combate por parte de Angola no sentido de descobrir as fortunas escondidas e punir os seus proprietários (como há muitos anos fazem os Estados Unidos), então, por receio de serem apanhados e punidos, os prevaricadores poderiam levar a sério a amnistia e aproveitá-la para evitarem futuros processos criminais. Contudo, a verdade é esse combate não se verifica em Angola. Pelo contrário, o que se tem perplexamente ouvido são declarações de impotência. O procurador-geral queixa-se de que não tem quadros nem meios para combater a grande criminalidade económico-financeira; o secretário para os Assuntos Políticos, Constitucionais e Parlamentares do presidente da República, Marcy Lopes, afirma que o executivo desconhece o valor global do dinheiro existente no exterior. Estas duas afirmações, aliadas à falta de acção subsequente, são um desconvite ao cumprimento da Lei do Repatriamento, mesmo na forma tranquilizadora em que esta foi redigida.
São estes os principais problemas estruturais da legislação: não inserção da amnistia num processo global de combate ao crime económico-financeiro e de reforma das finanças públicas; desequilíbrio entre os procedimentos voluntários e coercivos; falta de mecanismos que motivem o repatriamento.
Do ponto de vista do normativo concreto, a proposta de lei também contém falhas que urge anotar, as quais, de facto, a esvaziam de conteúdo operacional. Logo no artigo 2.º, a propósito do âmbito subjectivo – isto é, das pessoas que são abrangidas pela lei –, determina-se: “A presente lei é aplicável às pessoas singulares residentes nacionais e às pessoas colectivas com sede, ou domicílio no território nacional”. É sabido que, na sua maioria, os dirigentes angolanos e as «pessoas expostas politicamente» parqueiam os seus activos em off-shores, ou seja, em empresas no estrangeiro beneficiando de regimes fiscais favoráveis. E estas não são abrangidas pela lei. Isabel dos Santos detém múltiplas empresas estrangeiras por esse mundo: Malta, Madeira, Ilhas Maurícias; Vicente e Dino, em Singapura; outros em Portugal. Poucos serão aqueles que têm activos em nome próprio e em nome de empresas com sede em Angola. Portanto, esta norma esvazia o sentido e o alcance da lei. Afinal, a fanfarra toca para pouco. De fora fica a maior parte das riquezas que estão em off-shores. Obviamente, se fosse para ser levada a sério, a lei devia prever uma extensão extraterritorial, abandonando noções de soberania já ultrapassadas. Daqui resulta um aspecto curioso: afinal, a amnistia pode não ser tão abrangente como se pensaria à primeira vista, pois não contempla os valores escondidos em entidades estrangeiras… Trata-se de um assunto a aprofundar.
Uma segunda redacção duvidosa da lei encontra-se no artigo 4.º b), que sujeita ao regime de repatriamento coercivo apenas “os recursos financeiros provenientes de operações comprovadamente ilícitas”. Quer isto dizer, muito simplesmente, que este repatriamento coercivo é atirado para as “calendas gregas”: adia-se a questão para um tempo que nunca há-de vir. Porque “comprovadamente” quer dizer só depois do trânsito em julgado de qualquer processo judicial… e, uma vez que neste momento não existem sequer processos judiciais relevantes, isto significa que muitos e muitos anos decorrerão… Na prática, o repatriamento coercivo fica assim esvaziado.
Há outros artigos de redacção duvidosa, como o artigo 9.º, acerca da impossibilidade de cumprimento do repatriamento.
Contudo, basta a menção ao artigo 2.º e 4.º b) para se perceber que, no fim de contas, esta lei é vazia de conteúdo, com uma redacção deficiente, que passa um perfeito “cheque em branco” aos prevaricadores do passado, sem qualquer consequência real, salvo a concessão de amnistia àqueles que escolham ser amnistiados nos seus próprios termos.
Assim, tem razão a UNITA quando afirma, em comunicado de imprensa, que ficou “consagrado o retorno ao país do capital primitivamente acumulado sob a autorização de José Eduardo dos Santos e legalizado o retorno do dinheiro roubado, cujas consequências sentimos no quotidiano de todos, com a falta do que é básico no âmbito da saúde, educação, emprego para os jovens, infra-estruturas sociais do país, etc.”.
Isto não significa que subscrevemos a proposta da UNITA da imposição de taxa de 45% aos activos repatriados. Esta proposta, embora justa, pecava por ser demasiado maximalista. Talvez uma taxa liberatória intermédia de 20% ou 25% fosse mais razoável e eficiente. Mas, e este é o ponto essencial, qualquer benefício deveria ser acompanhado de uma forte possibilidade de sanção. A coacção tem de andar a par da voluntariedade. Caso contrário, esta última não funciona.
Em resumo, esta lei, como dizia Mao Tsé-Tung, é um tigre de papel.
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