Agente da DNIC conta em tribunal como executou Alvés Kamulingue
Fonte: A Capital
Divulgação: Planalto De Malanje Rio Capôpa
“Matei porque me mandaram matar”
Aquele que se esperava um julgamento dos acusados de matarem dois activistas políticos assumiu contornos cinematográficos com as revelações feitas na passada segunda-feira, 01 de Setembro, primeiro dia de audiências. Revelou-se, por exemplo, os meandros de uma alegada conspiração em que agentes internacionais apoiam os jovens do Movimento Revolucionário Angolano, conhecido por organizar as manifestações tidas, pelos organismos do Estado, como acções de subversão.
Duas revelações importantes, nesse sentido, foram feitas por alguns dos réus, todos eles, digamos, “operativos” donos de uma rica folha de serviços “especiais” prestados aos Serviços de Inteligência e Segurança do Estado (Sinse), alguns deles, e à Direcção Nacional de Investigação Criminal, outros. Mas a primeira surpresa surgiu mesmo quando o advogado de um dos réus, no caso Vieira Lopes, revelou que Alves Kamulingue, habitualmente apodado como activista político com simpatias para com a oposição, era afinal um agente do Estado infiltrado nos ditos movimentos subversivos.
O causídico Benja Satula, que defende o réu Vieira Lopes, antigo delegado do Sinse na província de Luanda, usou esta informação quando respondia às acusações formuladas contra o seu constituinte de que tinha sido ele a mandar matar os réus Alves Cassule e Isaías Kamulingiui. Ele explicou que Vieira Lopes, a data dos factos chefe dos Serviços na província de Luanda, não poderia ter ordenado a morte do cidadão, uma vez que, como agente, estava infiltrado entre os manifestantes.
“Não tinha motivos para matá-lo”, destacou o advogado, transmitindo, para o tribunal, tudo quanto lhe tinha sido passado pelo seu cliente. Este que, segundo contou Satula, foi notificado que sob o punho de um agente infiltrado no seio dos “subversores” havia chegado uma carta ao Governo Provincial de Luanda, solicitando autorização para a realização de uma manifestação. Vieira Lopes, ao corrente da informação, tratou de a repassar para o comandante provincial em exercício Dias do Nascimento, solicitando que o agente em causa fosse capturado e entregue às autoridades competentes. Segundo foi dito em tribunal, foi com espanto quer sou, mais tarde, que o agente tinha sido morto por um outro agente, réu neste mesmo processo, afecto aos serviços de investigação da Polícia Nacional.
Ancorado nesta argumentação, Vieira Lopes procurou deixar claro que jamais orientou quem quer que fosse a fazer a execução de que é acusado de ser o mandante, agora em tribunal. Uma negação, entretanto, contrariada por outros réus no processo. Os advogados de dois réus afectos à polícia de investigação criminal acusaram directamente Vieira Lopes, como sendo de quem partiu a ordem para a execução de Kamulingui. E o móbil do crime foi ainda mais revelador. Mostrou contornos de uma conspiração que suporta, na verdade, os movimentos “revolucionários que por aqui pululam”. Falou-se de uma cidadã estrangeira, identificada como Elisabeth Ramler, que veio noutras vestes que, na verdade, desenvolvia trabalhos de espionagem. Era ela, afinal, uma especialista em promoção de manifestações, estando envolvida na chamada “primavera árabe”. Uma vez em Angola, manteve contacto com vários jovens dos movimentos “subversivos”, entre os quais figurava Alves Kamulingui.
Essas mesmas alegações contra Vieira Lopes foram reforçadas por Manuel Miranda, ele que, na altura dos factos, chefiava o departamento de investigação criminal da divisão policial das Ingombotas. Disse ter recebido como missão a detenção de um indivíduo que manteve uma reunião, no Hotel Skyna, em Luanda, com uma agente da CIA e que se dirigia para o Largo da Independência ao encontro dos seus colegas dos movimentos de manifestantes. A ordem é que fosse detido, antes de chegar à praça da independência.
O dia de todas as revelações
Entre uma e outra revelação, o julgamento dos acusados da morte de Alves Kamulingui e Isaías Cassule, duas figuras, até então vistas como meros activistas políticos, seguiu escaldante desde o primeiro dia. A sessão inaugural aconteceu na segunda-feira, com a presença de pelo menos sete dos 10 réus arrolados. Três dos acusados não compareceram, dois por estarem em parte incerta, havendo, ainda, um terceiro que faleceu durante a instrução do processo. Este é Pedro Veloso Gabriel Antunes, enquanto os ausentes são Benilson pereira, 28 anos, e Edvaldo Santos, 25 anos, cujo paradeiro ainda é desconhecido.
Na segunda-feira, a sala estava cheia, com uma assistência devidamente composta de familiares, das vítimas e dos réus, jornalistas, além de outras tantas pessoas que para lá foram atraídas dada a mediatização que o caso mereceu. No dia de todas as surpresas, em que foram feitas revelações sobre o alegado verdadeiro papel de Alves Kamulingui, os advogados destes mostraram-se surpreendidos. Exigiram a apresentação de provas documentais de que a vítima em questão pertencia, com efeito, ao aparelho de segurança do Estado. Sugeriu-se, mesmo, que no dia em que tal for feito, o julgamento decorra a portas fechadas, dada a sensibilidade da matéria em tratamento.
Matei porque me mandaram matar
Por via do julgamento, e pelo que foi determinado na instrução processual, já se sabe de quem foi a mão que disparou contra Alves Kamulingue. Porém, esta mesma mão, apesar de confessar a autoria do disparo, recusa ser o cérebro pensante da operação. Entre acusações e negações, ouviram-se os nomes de Francisco Tenda Daniel, mais conhecido como Kiko, um agente da Polícia de investigação criminal sobre o qual recai a acusação de ter morto a vítima. Mas, por outro lado, soaram os nomes de Paulo Mota, delegado adjunto do Sinse, e Vieira Lopes, em nome dos quais, alegadamente, se executou o cidadão.
Os detalhes da operação, cujo fim trágico motivou o julgamento, foram relatados na primeira pessoa por quem deu os primeiros passos.
No dia da ocorrência, segundo relatou, estava em casa de repouso quando recebeu um telefonema do seu chefe, Manuel Miranda, convocando-o para uma missão que não especificou. Do Cassenda, onde residia, rumou para as Ingombotas, onde o chefe o aguardava ao volante de uma viatura de marca Chevrolet Spark, cor azul, com a chapa de matricula LD-22-12-VY. Nas imediações do Hotel Skyna, ele e mais dois colegas, portanto Luís Miranda e Dorivaldo dos Santos, interceptaram a vítima que seguia já em direcção ao largo da independência.
Foi Kiko que desceu da viatura e convidou Alves Kamulingui a entrar nela, alegadamente sem fazer uso de qualquer elemento de pressão. Kamulingui no interior, ele ligou chefe Manuel Miranda que o orientou a levá-lo para o norte de Luanda, pelo que este rumou com o malogrado até ao Instituto de Ciências Policiais Osvaldo Serra Van-Dúnem. Minutos depois, o seu chefe, Manuel Miranda, e o delegado adjunto do Sinse, Augusto Mota, foram ao seu encontro para confirmar se o cidadão na viatura era, de facto, Alves Kamulingui. E era-o, de facto. Daí, o grupo, já sem esses dois elementos, rumou para a zona dos Ramiros, no quilómetro 42, um bairro conhecido como Buraco.
Kiko contou que se comunicava sempre com o seu chefe pelo telefone, e que esse seguia-o numa outra viatura acompanhado de Augusto Mota. Uma vez no Buraco,mandaram Kamulingui sair da viatura, mas antes amarram-no, mãos, pés e o joelho, até receberem a ordem de execução.
Foi aqui que Kiko contou como se pôs fim à vida de Kamuligui: “O senhor Mota disse-me três vezes para disparar, mas recusei. Só o fiz quando o meu chefe disse-me para o fazer, porque era uma orientação superior”, recordou Kiko, aludindo ao momento em que fez o disparo mortal contra aquele indefeso homem. Questionado pelo tribunal sobre a região do corpo em que ele foi atingido, ele disse que fez o disparo sem olhar para a vítima. E sobre a reacção de de Kamulingui, explicou: “ele (Kamulingui), gritou: aí minha mãe! A seguir caiu”.
Na terça-feira, 02, foi a vez de ser ouvido pelo tribunal Manuel Miranda, na altura dos factos chefe do departamento de investigação criminal da Ingombota. Disse que no dia dos factos recebeu, por voltas das 15 horas, o telefonema do seu director, Amaro Neto, orientando-o a criar uma equipa e contactar o delegado do SINSE em Luanda para auxilia-lo numa missão, todavia não especificada.
Segundo Manuel Miranda, Amaro Neto, também deu-lhe o contacto do delegado do SINSE, no caso, Vieira Lopes para então com este acertar o auxilio que lhe devia prestar. Dito e feito, ligou para Vieira Lopes e combinaram encontrar-se junto a pastelaria Nilo, na Maianga. Quando lá chegou, parou o seu automóvel por detrás da viatura de Vieira Lopes e ligou para este a visa-lo. Em resposta, disse-lhe que o seu adjunto iria ao seu encontro e daria todas as orientações sobre a referida missão. “O Mota desceu da viatura do senhor Vieira Lopes e subiu para a minha”, frisou.
Soube, então, que a missão era deter Alves Kamulingui, agente dos Serviços, que acabara de manter um encontro com uma operacional da CIA que deixara instruções para serem passadas para os manifestantes no largo da independência. Interrogado sobre se a missão era deter, qual a razão de o terem morto, respondeu que quem ordenou foi, de facto, foi o responsável do Sinse. “O senhor Mota foi quem mandou disparar”, disse, reiterando que as alegações de Kiko, seu subordinado, como tendo recusado a ordem, mas que a executou dada a insistência de que eram as orientações superiores do senhor Vieira Lopes”.
Interrogado sobre a reação de Kamulingui perante aquele ambiente, disse que a vítima esteve sempre tranquila e que quando viu o delegado do Sinse perguntou-lhe “chefe o que se passa, estás a fazer isso comigo porquê”, recordou.
Ao saber da informação de que Kamulingui era supostamente efectivo do Sinse, Manuel Miranda mostrou-se estupefacto, dizendo-se usado. “Eles usaram-nos, fizeram-nos de cobaia para fazer isso com o homem deles, enganando-nos que a missão era deter alguém que cometeu um crime contra a segurança do Estado, afinal era colegas deles”.
De seguida, o réu questionou-se: “assim então é como?”, ao que o juiz Carlos Baltazar retorquiu: “quem deve perguntar se é como, sou eu”.
Cassule morreu asfixiado
As revelações continuam na próxima semana com a audição dos restantes réus, devendo o julgamento dedicar-se a esclarecer as circunstâncias da morte de Isaías Cassule. Este, apresentado de facto como activista político, desapareceu no mesmo dia da morte de Alves Kamulingui. Conta-se, a seu respeito, nos autos que foi igualmente raptado por elementos do Sinse no município do Cazenga, tendo sido amarrado e atirado ao porta malas de uma viatura com um saco plástico a cobrir-lhe o rosto. Uma vez no destino final, no município de Cacuaco, eles aperceberam-se que a vítima não mais se movia. Os raptores abriram a porta mala e viram que tinha morrido asfixiado, e defecado nas calças, pelo procuraram desfazer-se do corpo, lançando-o ao rido Dande. Até hoje, os dois cadáveres, de Alves Kamulingui e de Isaías Kassule, não foram identificados.
Um general no banco dos réus
O julgamento dos acusados da morte de Alves Kamulingui e Isaías Cassule deve retomar na próxima segunda-feira, 08, mas terá, como ponto prévio, a decisão sobre a competência ou não do tribunal para julgar um dos réus, no caso Vieira Lopes, que foi recentemente promovido ao grau militar de general. Por isso, a sua defesa alega que ele deve ser julgado em tribunal competente.
Mariano Brás