JEAN-CLAUDE BASTOS DE MORAIS: O VIGARISTA
No meu trabalho de investigar e expor actos de grande corrupção assim como de abusos dos direitos humanos em Angola, ser alvo de interrogações pelo Serviço de Investigação Criminal (SIC) e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) é uma rotina que contribui para a luta pela justiça.
Volta e meia alguém menciona, como “conselho” ou ameaça velada, que o regime tem sempre o poder da violência e pode resolver o problema pela lei da bala ou outro método fatal. Lá fora, nos países “ocidentais” e especificamente em Portugal, as pessoas surpreendem-se pelo facto de a ditadura angolana não recorrer à violência (como fazem tantas outras ditaduras).
Entretanto, foi com algum espanto que, no domingo passado, recebi uma notificação de Londres, do escritório da Schillings, relacionada com a minha recente investigação sobre a Caioporto S.A. e o artigo de Rui Verde “Zenú: Corrupção Mata”.
“Como já é do conhecimento de V. Exa., atuamos em nome de Jean-Claude Bastos, o qual é um accionista indirecto da Caioporto, S.A. e redigimos esta carta de acordo com o Protocolo de Acção Prévia por Difamação”, diz a notificação.
Na sua peça, o Maka Angola esclareceu — e pode prová-lo em tribunal — que Jean-Claude Bastos de Morais, o principal parceiro de negócios do filho do presidente José Eduardo dos Santos, José Filomeno, detém 99.9 por cento da quota da Caioporto S.A.
A Schillings é uma firma que presta serviços na área da defesa da reputação e dispõe de advogados, especialistas em segurança cibernética, analistas de inteligência e consultores de risco. Não se trata, portanto, do tradicional escritório ou sociedade de advogados, mas de uma empresa sediada em Londres, Reino Unido, com múltiplas valências para defender reputações, entre as quais se incluem os serviços jurídicos. Esta empresa presta serviços a atletas promíscuos, personalidades dos média e políticos desesperados por manterem o seu mau comportamento fora da esfera pública.
Esse escritório é uma primeira escolha para quem quer recorrer ao chamado “turismo judicial”. Este termo, cunhado pelo célebre advogado dos direitos humanos Geoffrey Robertson, designa a prática de instaurar um processo jurídico no Reino Unido relativo a casos de calúnia e difamação ocorridos noutros países, nomeadamente os Estados Unidos, porque a legislação inglesa oferece menos protecção a quem seja acusado de difamação
Ser ameaçado directamente a partir do exterior é uma novidade. Será que o general João Maria de Sousa, o zeloso procurador-geral da República, já não serve para defender a grande corrupção do regime? E como ficam o SIC e os reputados escritórios de advogados angolanos que fazem a melhor defesa dos interesses do poder? Afinal de contas, este caso envolve o filho do presidente. Ademais, em Angola, Jean-Claude Bastos de Morais usa convenientemente a sua nacionalidade angolana, e não a suíça. Ele não é inglês, o Maka Angola não é inglês, o Rafael Marques de Morais não é inglês, o Zenú não é inglês. Ninguém vive na Inglaterra. Terem ido buscar uma empresa inglesa é de uma pomposidade, de uma arrogância que apenas revela o desprezo por Angola e pelos angolanos. O recurso à Schillings é uma forma de pressão intimidatória e antipatriótica.
Jean-Claude Bastos de Morais é um vigarista que se especializou em usar as artimanhas das relações públicas e da comunicação para conferir um ar sofisticado à sua participação no saque de Angola, através do seu amigo e dependente José Filomeno dos Santos, o filho do presidente. Repito: Jean-Claude Bastos de Morais é um vigarista.
A Schillings exige que o Maka Angola remova “imediatamente os artigos e a sondagem do vosso site”, se comprometa “a não republicar as alegações”, a “publicar um pedido de desculpas no seu site (texto e termos a serem previamente acordados com esta empresa [Schillings] esclarecendo que Jean-Claude Bastos não está a ser enriquecido indevidamente ou ilegalmente pelo projeto do Porto de Caio”, a “compensar o nosso cliente pelos danos causados à sua reputação e negócios” e, finalmente, a “pagar os custos legais do nosso cliente”.
A Schillings pede uma resposta até ao dia 27 de Março. O Maka Angola respondeu no dia seguinte, 20 de Março. A resposta às 23 páginas da notificação é curta: “Agradecemos a vossa mensagem e notamos que nada nos obriga ao vosso pedido de confidencialidade. Ver-nos-emos em tribunal.”
A notificação da Schillings alerta: “Privado e Confidencial” e “Não se destina a publicação”. Note-se que não estamos perante uma carta fechada, mas sim perante um e-mail. As menções “Privado e Confidencial” e “Não se destina a publicação” não estão acompanhadas de qualquer garantia legal. A declaração de confidencialidade só obriga a entidade emitente e não a receptora, que a pode divulgar no exercício dos seus direitos.
Conteúdo da notificação
Em primeiro lugar, o e-mail começa por afirmar que a publicação no Maka Angola do artigo “Zenú: Corrupção Mata” tem como intenção disseminar a informação por outros meios de comunicação. É um processo de intenções que não subsiste a qualquer teste de razoabilidade objectiva. O Maka Angola não tem qualquer acordo com outras publicações para a disseminação dos seus artigos. Estas fazem-no por sua conta e risco.
Depois, afirma-se, sem se fundamentar, que as declarações do artigo são falsas e enganosas. Mentira: as informações do Maka Angola baseiam-se em documentos públicos e oficiais e na sua interpretação cronológica, bem como em fontes credíveis e protegidas.
A notificação refere também, por variadas vezes, que não foi fixado um prazo para entrega das respostas às questões que o Maka Angola colocou antes de avançar com a publicação. Ora, no âmbito jornalístico não é necessário fixar prazos específicos para respostas. E a Djembe Communications, que representa simultaneamente Jean-Claude Bastos de Morais e o Fundo Soberano de Angola (FSDEA), nunca respondeu às mensagens que lhe foram enviadas.
Note-se, contudo, que os próprios advogados referem que questões foram colocadas a 20 de Fevereiro de 2017. Ora, a matéria saiu a 13 de Março de 2017. Temos portanto um prazo objectivo de resposta mais do que razoável: três semanas.
Mas a Schillings escreve na sua notificação: “A 1 de Março foram fornecidas a V. Exa. respostas em nome do Presidente do FSDEA através da Djembe, seguidas por uma chamada telefónica e outro e-mail a solicitar a confirmação de receção. A 8 de Março V. Exa. contactou o FSDEA solicitando as respostas que já tinham sido enviadas para V. Exa. e, subsequentemente, tais respostas não foram incorporadas nos artigos.” Como se defende uma reputação com falsidades deste tamanho? O autor nunca recebeu tal e-mail.
O que na realidade aconteceu foi: perante a ausência de respostas por parte de Filomeno José dos Santos “Zenú” e de Jean-Claude Bastos de Morais, recorremos à porta-voz do FSDEA, Nicole Anwer, reencaminhando-lhe as perguntas. Esta não respondeu à última mensagem, de 8 de Março de 2017, em que a informávamos de que a matéria seria publicada a 13 de Março.
É uma confusão. A Schillings apresenta-se como representante de Jean-Claude Bastos de Morais mas acaba por fazer também a defesa de Filomeno José dos Santos.
Os factos
A análise da evolução do negócio do Porto Caio é baseada na interpretação dos textos oficiais:
i) Decreto Presidencial n.º 177/12, de 14 de Agosto de 2012. Através deste decreto, o ministro dos Transportes foi autorizado a realizar um contrato de concessão com a empresa Caioporto S.A. relativamente ao novo Porto do Caio. Esse contrato estaria no âmbito de uma parceria público-privada e incluiria, por parte da empresa privada Caioporto S.A., o financiamento, planeamento, concepção, remodelação, engenharia, construção e aprovisionamento do novo Porto do Caio. (artigo 2.º do DP n.º 177/12). Em contrapartida desta tarefa, a empresa obtinha o exclusivo no fornecimento de instalações e serviços no Porto a qualquer embarcação que o utilizasse.
ii) Decreto Presidencial n.º 234/12, de 4 de Dezembro. A grande alteração que este decreto introduz no contrato é a autorização de prestação de uma garantia de Estado de pagamento à primeira solicitação a favor das entidades que financiam a concessão (redacção do artigo 6.º A do Decreto Presidencial n.º 177/12 introduzida pelo artigo 2.º do Decreto Presidencial n. 232/12). O n.º 2 do mesmo novo artigo 6.º A acrescenta que o Estado Angolano presta a favor da empresa privada uma garantia de receita mínima para assegurar a viabilidade económica do Porto. Isto quer dizer que o Estado se responsabiliza pelo sucesso do negócio. Transcreve-se o artigo, uma vez que foi objecto de contestação directa no e-mail: “O Estado vai ainda prestar, a favor da concessionária, uma garantia de receita mínima, por forma a garantir a viabilidade económica do Porto do Caio o longo do período da concessão.” Isto nega em absoluto as afirmações do e-mail no ponto (a.5).
iii) Decreto Presidencial n.º 230-A/15, 29 de Dezembro de 2015. Este decreto cria mais benefícios para a zona a ser explorada pela empresa e autoriza a prestação de uma garantia de Estado no valor de 751 milhões de dólares.
iv) Decreto Presidencial, o n.º 238/16, de 21 de Dezembro. Este decreto muda tudo. O financiador deixa de ser a empresa privada e passa a ser o Estado. E o Estado financia a obra através da inclusão do projecto na linha de crédito concedida pela China e definida pelo Decreto Presidencial n.º 138/16, de 17 de Junho.
Este decreto, no seu artigo 1.º, estabelece que a concessão atribuída à Caioporto S.A. se mantém exactamente igual, excepto naquilo que concerne ao financiamento. O financiamento fica previsto nos artigos 2.º e 4.º, segundo os quais o Estado assume 85 por cento do financiamento e a empresa 15 por cento, sendo que o valor do contrato de empreitada é de pouco mais de 831 milhões de dólares (uma subida de 290 milhões de dólares, equivalente a 54 por cento). A empreiteira é a empresa chinesa China Road and Bridge Corporation.
Portanto, o Estado financia 85 por cento. A empresa financia 15 por cento, ou seja, 124 milhões de dólares.
A 30 de Janeiro de 2017, é anunciado que o Fundo Soberano de Angola vai investir no Porto de Caio 180 milhões de dólares. Por consequência, facilmente se vê que o seu investimento é que complementa o empréstimo chinês. Assim, os 15 por cento de financiamento que competiam à empresa privada, afinal, são trazidos pelo muito público Fundo Soberano. No e-mail afirma-se que “O FSDEA não investiu na Caioporto, S.A., como incorretamente indicado nos Artigos. (sic)”. Mas de seguida confirma-se o investimento: “O FSDEA não investiu na Caioporto, S.A., como incorretamente indicado nos artigos. O investimento de 180 milhões de dólares americanos do FSDEA no porto foi, na realidade, feito através do fundo de infra-estruturas de 1,1 mil milhões de dólares americanos do FSDEA.”
Não foi o Fundo Soberano que investiu, foi um fundo do Fundo Soberano… Um fundo do Fundo Soberano é o quê? É de aparvalhar.
Afirma-se, também no e-mail, que “as (…) garantias foram revogadas logo após o decreto presidencial ter sido emitido” (a.5). Aqui temos um exemplo do desconhecimento/ignorância (?) demonstrado na notificação. Ainda em 2015, após o Decreto de 2012, que o e-mail contesta, é publicamente prestada uma garantia de 750 milhões de dólares. Está documentado. A garantia soberana só seria revogada posteriormente porque o Estado assumiu o custo da obra, portanto não se vai garantir a si próprio…
Ademais, se assim não fosse, a retirada de garantias soberanas a instituições terceiras já provocou o caos financeiro e o descalabro na credibilidade bancária de Angola no estrangeiro aquando da “revogação” da garantia prestada ao BESA. Por consequência, tal (a revogação de uma garantia) não seria uma boa notícia, mas mais um exemplo de desregramento e desrespeito pelas regras de direito financeiro internacional.
Finalmente, a notificação também confunde garantia soberana com garantia de receita mínima. Realidades muito diferentes. Num caso, o Estado assegura o pagamento de dívidas de uma terceira pessoa. No outro, o Estado assegura determinado pagamento a essa terceira pessoa.
Em suma, quem tem de pedir desculpas é Jean-Claude Bastos de Morais e o seu dependente José Filomeno dos Santos. Têm de pedir desculpa aos cidadãos angolanos, porque saqueiam os fundos públicos (que são pertença da população angolana) através do Fundo Soberano. Mais do que isso, têm de ressarcir os cidadãos angolanos por todos os milhões que desviam para enriquecimento próprio. Confrontá-los em tribunal será uma honra. Tarde ou cedo serão julgados.