Os raptos e os presumíveis assassinatos, em Maio de 2012, dos activistas Alves Kamulingue e Isaías Cassule estão finalmente a merecer a devida atenção por parte da classe política angolana, assim como da sociedade em geral. O caso representa a nova viragem na abordagem política da vida e do quotidiano dos cidadãos. É a nova era da primazia dos direitos humanos.
Da parte dos partidos políticos, a UNITA, o principal partido da oposição, pretende dar corpo ao sentimento de indignação da sociedade civil, organizando uma manifestação no dia 23 de Novembro. A iniciativa é oportuna, mas o comunicado para a sua convocação foi pouco inteligente e reabriu velhas feridas ao lembrar, de forma leviana, os crimes políticos do passado.
O MPLA, partido no poder, por sua vez, desenterrou o seu machado de guerra e, com um discurso belicista, tenta desencorajar o acto. O seu comunicado é um desastre político e mostra que, na falta de argumentos, a intolerância política e a violência continuam a ser os sustentáculos do seu poder.
Na realidade, trata-se de uma contenda entre, por um lado, a pressão para o exercício do direito de cidadania e das liberdades consagradas na Constituição, e por outro, a imposição do medo como mecanismo de controlo autoritário da sociedade.
Os Acontecimentos e os Jacarés
Tudo se deve a uma fuga de informação de um órgão do Estado envolvido no caso, que descreveu, ao Club-K, os detalhes da alegada operação, de forma antecipada a qualquer pronunciamento oficial. O semanário A Capital, controlado pelo aparelho securitário, foi mais longe e pormenorizou, inclusive, a participação individual dos autores no sequestro, tortura e execução de Alves Kamulingue e Isaías Cassule. Também informou como, supostamente, os agentes da Polícia Nacional, da Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC) e dos Serviços de Inteligência e de Segurança de Estado (SINSE), atiraram o corpo de uma das vítimas aos jacarés que, ao devorarem o malogrado, engoliram a principal prova do crime, o seu corpo.
A execução sumária dos dois activistas deveu-se à sua participação numa tentativa frustrada de realização de uma manifestação, então marcada para 27 de Maio de 2012, que pretendia juntar cerca de dois mil ex-militares, a maioria dos quais desvinculados da Unidade de Guarda Presidencial, que pretendiam protestar pela falta de pagamento das suas pensões.
Os Argumentos da UNITA
A UNITA, em comunicado emitido a 15 de Novembro, convocou uma manifestação para Sábado, 23 de Novembro, em todo o país. A UNITA apela à participação de todos os angolanos, independentemente da sua filiação partidária, numa demonstração pacífica e dentro dos termos da lei, em defesa da democracia e da liberdade.
No seu comunicado, a UNITA lembra também os crimes cometidos sob os auspícios do MPLA, em 1975, durante a guerra civil. Menciona ainda os assassinatos selectivos de políticos e jornalistas que ocorreram nos anos 90 e na década seguinte.
A UNITA cometeu assim um erro político crasso pelo qual merece ser criticada. Ao referir-se aos crimes políticos do passado, atribuídos ao MPLA, a UNITA deve ter em perspectiva que também é responsável por um rol de crimes políticos, que não são poucos, cometidos no mesmo período. É um grave lapso de memória.
No seu comunicado, a UNITA refere-se ao Acórdão nº 319/2013, do Tribunal Constitucional, que confirma os poderes absolutos do presidente sobre todos os actos do seu governo. O partido da oposição usou, correctamente, da referida decisão judicial para atribuir responsabilidades políticas ao presidente José Eduardo dos Santos, pelo desaparecimento e suposta execução dos dois activistas.
A sentença proferida pelo juiz presidente do Tribunal Constitucional, Rui Ferreira, e seus pares, é um presente envenenado para o presidente. Concede ao chefe de Estado toda a segurança jurídica para governar o país como um feudo pessoal e nenhuma garantia para dormir descansado quando abandonar ou for forçado a deixar o poder. Passa a assumir, conforme esclarecimento do Tribunal Constitucional, a autoria moral, como único responsável, por todos as violações dos direitos humanos perpetradas pelo seu governo.
É um sinal de maturidade democrática que os partidos políticos representem os sentimentos colectivos e profundos das populações, e usem a legislação existente como ponto de referência dos seus argumentos políticos. Isso também exige capacidade de engajar a sociedade não apenas na expressão pública dos seus anseios mais candentes, mas também na resolução efectiva das suas exigências colectivas.
A UNITA nem sempre tem demonstrado capacidade para o fazer e para colocar o interesse público acima dos seus objectivos político-partidários. Ao responder, de forma adequada, à legitima indignação da sociedade angolana merece apoio. Do mesmo modo, tem de ser aconselhada de modo a exercer um papel exemplar, colocando os interesses colectivos da sociedade, acima das suas ambições político-partidárias.
Com a convocação da manifestação, a UNITA está a representar os sentimentos de repúdio e indignação que as recentes revelações sobre o caso Cassule e Kamulingue originaram.
A UNITA deve manter um discurso sereno e conciliador, rejeitando qualquer tentação de aproveitamento político do evento para apresentar as suas reclamações partidárias. Basta que defenda o direito à vida dos cidadãos. A manifestação deve ser apenas sobre os direitos humanos, para que seja congregadora e honre a memória da Cassule e Kamulingue, os mártires.
Por essa via, é fundamental registar, como notável, o convite formulado pela UNITA aos militantes do MPLA para se juntarem à manifestação. A UNITA sublinha que “Angola precisa do MPLA” e dos “patriotas” do partido no poder. A UNITA convida também o pessoal do SINSE e da DNIC a juntarem-se ao protesto.
Os Argumentos do MPLA
Por sua vez, o Bureau Político do MPLA emitiu um comunicado, a 19 de Novembro, no qual junta também a sua voz à da sociedade civil e da oposição, condenando “o acto vil” contra Alves Kamulingue e Isaías Cassule. O MPLA manifesta também a sua solidariedade às famílias. O partido no poder deu ainda “o seu total apoio as suas iniciativas assumidas com base na lei, contra o acto referido”.
Depois dessa introdução, o comunicado do MPLA é um verdadeiro discurso de guerra. Revela, uma vez mais, o seu habitual recurso à violência sempre que os dirigentes do MPLA se mostram incapazes para dar resposta aos legítimos ensejos da sociedade. O MPLA explora, assim, o medo maior do povo angolano, traumatizado por 40 anos de conflicto: a guerra.
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No seu direito de resposta, usado de forma beligerante, o MPLA aproveita a invocação da UNITA sobre os crimes do passado para lembrar as atrocidades da UNITA. O comunicado sublinha ainda que foi o MPLA que ganhou a guerra. Quem perdeu com a guerra foi o povo. Este perdeu os seus ente-queridos, os seus bens e incontáveis oportunidades de desenvolvimento humano.
De forma contraditória, o MPLA insurge-se contra a convocatória da UNITA para a manifestação, para a qual esta tem legitimidade e respaldo constitucional. É nos momentos críticos e de impasse que os cidadãos devem realizar manifestações pacíficas para fazer ouvir as suas vozes.
No comunicado, o MPLA indica ser “absolutamente desproporcional e oportunista a convocação de manifestações de rua” e recorre a uma verborreia de acusações de “caos”, “anarquia”, “subversão” e “terrorismo” por parte da UNITA por ter convocado a manifestação.
A Constituição, a que o MPLA sempre recorre como o guardião da legalidade, é clara sobre o direito à manifestação. “É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização nos termos da lei”, estabelece a Constituição (Art. 47º, 1º).
O MPLA revela, uma vez mais, a sua profunda intolerância política e a sua falta de escrúpulos em recorrer a um discurso inflamatório num momento sensível para o desenvolvimento da democracia em Angola.
Para ser consistente com a sua manifestação de solidariedade, os dirigentes do MPLA devem visitar as famílias afectadas e prestar-lhes apoio moral e material. Também pode organizar um minuto de silêncio durante uma sessão na Assembleia Nacional, em memória dos activistas. Afinal, o parlamento também é a Assembleia do Povo. Só com actos públicos de defesa dos direitos humanos, a direcção do MPLA estará em condições de demonstrar uma conexão entre o que diz e o que faz.
Quem Respeita a Lei
A UNITA tem sido acusada pela sociedade de liderar uma oposição tímida e ineficaz. Em 11 anos de paz, não têm sido ouvidas vozes, no seio do povo angolano, a apontar o dedo à liderança da UNITA por eventuais actos de violação dos direitos humanos ou acções ilegais que constituam ameaça à ordem pública.
Na realidade, a UNITA tem demonstrado, apesar das suas falhas e limitações como partido político, ser uma força respeitadora dos princípios e valores consagrados na Constituição.
Só o Bureau Político do MPLA e os seus acérrimos defensores têm feito recurso a um modelo esgotado e irresponsável de ameaças gratuitas de violência e de retorno à guerra.
O MPLA tem demonstrado, por via dos actos do seu presidente e do seu governo, total desrespeito pela legislação em vigor. É o MPLA quem tem legitimado a concentração absoluta de poderes nas mãos do presidente, para cujo uso e abuso deve e merece ser responsabilizado.
Desde 2011, o governo do MPLA tem reprimido, de forma violenta, as tentativas de manifestação pacífica por parte de jovens, em clara violação à Constituição. A 15 de Junho passado, o regime do presidente José Eduardo dos Santos usou as Forças Armadas Angolanas (FAA) para reprimir uma manifestação constituída por cerca de 15 mil pessoas, maioritariamente por mulheres, em Cafunfo, na província da Lunda-Norte. De forma pacífica, as mulheres exigiam o fim da onda de assassinatos de camponesas que, na sua grande maioria, têm as suas lavras no perímetro da zona de concessão diamantífera da Sociedade Mineira do Cuango.
Esse caso ilustra que as ameaças de violência contra a UNITA são, na realidade, uma ameaça contra todos os angolanos de bem que procuram defender os direitos humanos e os interesses comuns da maioria do povo angolano.
Os militantes honestos e os patriotas do MPLA não devem ter vergonha em defender os interesses do povo angolano, sobretudo o respeito pelos direitos humanos.
A manifestação marcada para dia 23 deve merecer a adesão de todos os angolanos e angolanas que partilham dos justificados sentimentos de indignação suscitados pelo desaparecimento de Cassule e Kamulingue.