quarta-feira, 14 de maio de 2014

LUANDA: Feitiçaria. Policia, MPLA e o assassinato do soba

Feitiçaria, Polícia, MPLA e o assassínio do Soba

Por Rafael Marques de MoraisFonte: Maka AngolaDivulgação: Planalto De Malanje Rio Capôpa12 Maio, 2014
O Tribunal Provincial do Moxico proferirá, a 14 de Maio, a sentença sobre o homicídio do soba António Catote Chimbidi, ocorrido depois de este ter sido denunciado como feiticeiro por um dirigente do MPLA e um comandante da Polícia Nacional.
Entre os réus do processo judicial encontram-se o primeiro-secretário do MPLA no município do Cangamba, Alberto Tchinongue Catolo, o comandante municipal da Polícia Nacional na referida localidade, Manuel N’doje Ijita Cawina, e o soba Cangamba, António Kanguia Candimbo.
O caso iniciou-se com um triângulo amoroso, que deu origem a uma acusação de feitiçaria. Como é habitual em muitas regiões, as altas entidades locais envolveram-se em cultos de adivinhação e promoveram o obscurantismo como mecanismo de justiça. Os dirigentes animaram um julgamento popular, o acusado de feitiçaria foi condenado à morte, com execução de sentença imediata. Pelo meio, como é igualmente habitual, havia uma agenda política.

A Narrativa

Maka Angola reconstitui a narrativa dos acontecimentos revelados e confirmados durante as várias sessões públicas de julgamento, no Tribunal Provincial do Moxico, sob processo nº 94/ – B2013.
Devido ao enorme interesse que o caso despertou na cidade do Luena, capital do Moxico, o Tribunal Provincial realizou cerca de nove sessões de julgamento na Sala de Conferências da Juventude, acomodando perto de 200 pessoas na audiência.
A história começou a desenrolar-se em Junho de 2012, na vila de Cangamba, sede do município com o mesmo nome, na província do Moxico.
Alone Masseca, secretário da administração municipal, adoeceu e decidiu consultar um curandeiro para “tratamento tradicional”. O curandeiro informou-o de que supostamente tinha sido enfeitiçado pelo comandante municipal Manuel Cawina e o putativo sogro deste, Xamassela. O adivinho falou-lhe também da sua morte iminente.
Havia uma ligação entre Alone Masseca e Manuel Cawina: A esposa do primeiro, conhecida apenas como Catarina, era amante do segundo. Duas filhas de Xamassela também mantinham relações amorosas com o comandante.
Alone Masseca, acreditando no curandeiro, redigiu uma carta acusatória contra o comandante e encetou contactos com os anciãos locais para informá-los da situação e do seu estado de saúde, que acreditava ser terminal. Acabou por falecer passados alguns dias.
Em reacção, os anciãos solicitaram uma reunião com o comandante Cawina, no jango, onde normalmente se realizam os encontros com as autoridades tradicionais, na presença de familiares do malogrado. Como compromisso, as partes decidiram enviar uma delegação à província do Kuando-Kubango para consultar um adivinho supostamente imparcial e distante da realidade local.
Três elementos, em representação, respectivamente, dos sobas, das famílias do malogrado e do acusado, constituíram a missão. No Kuando-Kubango, conforme depoimentos confirmados em tribunal, o curandeiro local reiterou a adivinha do seu colega de Cangamba. Segundo ele, o comandante e o seu sogro eram mesmo os feiticeiros.
Insatisfeito com o veredicto, o comandante propôs uma segunda missão, desta feita no Congo, onde o adivinho estrangeiro seria mais bem qualificado e de indisputável imparcialidade.
O primeiro-secretário do MPLA interveio na qualidade de patrocinador da missão ao estrangeiro, tendo disponibilizado uma viatura todo-o-terreno, dinheiro e o necessário para a jornada. O dirigente do MPLA é tio de Catarina, a viúva de Masseca e amante do oficial da Polícia Nacional.
Domingos Caioco, irmão do comandante Cawina, chefiou a delegação.
Horas após o regresso, a 9 de Novembro de 2012, o secretário do MPLA, Alberto Catolo, o comandante Cawina e o soba Cangamba dirigiram a segunda reunião no jango, destinada a apresentar os resultados da missão. Vários familiares de Alone Masseca e mais de 20 membros da comunidade local também responderam ao apelo para testemunharem a comunicação do veredicto trazido do Congo.
De acordo com o testemunho de Memória Chimbidi, filho do soba António Catote Chimbidi, o pai também havia sido convocado para assistir ao encontro. O primeiro-secretário anunciou a reunião enquanto a delegação se encontrava ainda de viagem.
No jango, o comandante Cawina apresentou a delegação enviada ao Congo, chefiada pelo seu irmão. Domingos Caioco procedeu com a divulgação do relatório de viagem. Informou que o adivinho congolês havia “descoberto” o soba Chimbidi e o seu sobrinho Pedro Likissi, funcionário do Ministério da Justiça e Direitos Humanos, como os verdadeiros feiticeiros.
Qual era a relação do soba e do seu sobrinho com os protagonistas?
António Catote Chimbidi era a máxima autoridade tradicional de Cangamba, com o título de regedor. Tinha como adversários figadais o primeiro-secretário do MPLA e o soba Cangamba.
A inimizade entre os três acentuou-se quando o príncipe dos Bundas, Muambando, cujos domínios se circunscrevem ao município do Lumbala-Nguimbo, tentou impor o soba Cangamba, da sua linhagem, como príncipe de Cangamba, um título inexistente na hierarquia da autoridade tradicional local.
Por sua vez, o primeiro-secretário, também de etnia Bunda, revelou-se como o maior aliado de Muambando e Cangamba, em guerra aberta contra o soba Chimbidi, um Luchaze. O soba Chimbidi tinha fama de ser um empecilho para os desígnios políticos de Alberto Tchinongue Catolo, o secretário do MPLA, no controlo absoluto da vontade das autoridades tradicionais e, por conseguinte, da população local, que continua muito ligada ao poder tradicional.
  
A sentença

 “O primeiro-secretário do MPLA tomou a palavra e entregou o meu pai às mãos da população. Disse ‘vocês, familiares do Alone, é que sabem o que vão fazer com essas pessoas’”, explica Memória Chimbidi.
Por sua vez, o soba Cangamba falou a seguir, corroborando as palavras do secretário Alberto Catolo, e ordenou o espancamento do seu colega. Os relógios marcavam perto das 14h30.
“Começaram a torturar o pai ali mesmo, no jango, enquanto um grupo saiu e queimou a casa do pai, as duas do Pedro Likissi e a sua viatura. Só não o mataram porque ele se encontrava no Luena”, recorda Memória Chimbidi.
O soba conseguiu escapar aos agressores e buscou refúgio em casa de um colega, o soba Caquete. A turba de linchadores ameaçou atear fogo à casa de Caquete e de o espancar também, caso não entregasse o fugitivo.
Um agente da polícia, conhecido por Fikixikixi, acompanhado por um civil, interveio em defesa do soba António Chimbidi, protegendo-o dos agressores, e escoltou-o até à casa do primeiro-secretário do MPLA, para garantir a sua segurança. Os agressores, munidos de paus e objectos contundentes, seguiam-nos.
Levou-o à casa do mesmo Pilatos que momentos antes ditara a sua sentença no jango.
“O primeiro-secretário disse ao agente e ao civil: ‘não o tragam para a minha casa. Matem-no lá fora’”, afirma a filha.
Persistentes, o agente Fikixikixi e o civil que o acompanhava não acataram as palavras de ordem do secretário. Acompanharam o soba Chimbidi até ao hospital municipal, para que fosse assistido, e trancaram a porta da sala onde o colocaram com um cadeado.
“Ficámos a saber que o comandante municipal tinha dado ordens à polícia para não se envolver no assunto”, conta António Chimbidi, que, na altura em companhia do seu irmão, procurava salvar o pai acorrendo ao local.
O agente Fikixikixi ligou à unidade policial a pedir assistência para salvar o soba. Falou com o agente Domingos Vihemba, que o alertou sobre a ordem do comandante a proibir qualquer intervenção dos seus subordinados a favor do soba. Fikixikixi acabou por retirar-se do local, sob pressão.
Por volta das 15h00, um jovem, conhecido apenas por Fue, liderou uma multidão de mais de 40 pessoas que marcharam para o hospital, resolvidas a fazer justiça por mãos próprias. Fue arrombou o cadeado, retirou o soba da sala onde se encontrava e arrastou-o para fora, onde o filho do malogrado AloneMasseca, Eliseu Masseca, o esperava com uma faca.
Ambos, Fue e Eliseu, assestaram vários golpes na cabeça do soba com as facas de que estavam munidos. “A faca do Fue entortou. Ele pausou, endireitou a faca, afiou-a numa pedra e continuou a esfaqueá-lo, assim como o Eliseu, na cabeça, orelhas, braços e pés, enquanto os outros lhe batiam com mocas no peito”, explica António Chimbidi.
“Assistimos a tudo. Éramos dois irmãos contra mais de 40 pessoas armadas com facas e paus. Eles [multidão] sabiam que nós éramos os filhos. Com medo, acabámos por fugir.”
Por volta das 18h00 do mesmo dia, os filhos regressaram ao hospital e encontraram o pai ainda vivo, estendido no mesmo local onde fora esfaqueado, esvaído em sangue. Os médicos, também sob ameaça, haviam debandado do hospital.
Um transeunte vociferava, junto ao soba sobre a desumanidade dos autores da barbárie.
Os filhos recolheram o pai e levaram-no para dentro do hospital. Passado uma hora um médico regressou ao hospital e aplicou soro ao soba.
A 10 de Novembro, no dia seguinte, de manhã cedo, o soba despertou e pediu ao seu filho António que arranjasse papel e esferográfica para registar a ocorrência.
Pediu que fossem anotados os nomes dos membros da delegação que se deslocou ao Congo. Ditou também os nomes de todos os aqueles que o agrediram e cujos nomes conhecia. Explicou a ordem dada pelo primeiro-secretário do MPLA à família de Alone Masseca, para que esta dispusesse do soba como bem entendesse. Informou sobre a presença do comandante no jango e o papel por este desempenhado na sua condenação arbitrária.
Por volta das 18h00 do mesmo dia, o soba morreu.

Feitiçaria Sim, Homicídio Não

Em tribunal, tanto o secretário do MPLA como o comandante policial reconheceram a narrativa das acusações de feitiçaria, as diligências empreendidas e as consequências. Negaram qualquer responsabilidade moral pela forma brutal como o soba foi morto. Ambos afirmaram ter abandonado o jango antes do espancamento do soba.
Maka Angola apurou, junto de fonte oficiosa, que o governador provincial do Moxico e primeiro-secretário provincial do MPLA, João Ernesto dos Santos “Liberdade”, se empenhou pessoalmente no sentido de providenciar assistência jurídica ao seu subordinado Alberto Tchinongue Catolo. O escritório de Paula Godinho & Associados representa o réu, enquanto a Associação Mãos Livres apoia, pro bono,a família do soba.
O juiz Pereira da Silva demonstrou grande coragem e capacidade no exercício das suas funções, pois levou o caso a julgamento, independentemente das pressões contrárias.
Inicialmente, a instrução preparatória atribuiu um falso número de processo ao caso, entregue à família, para que esta persistisse em saber de uma investigação inexistente. Activistas locais empenharam-se em denunciar o expediente, que começa a ser comum para engavetar casos incómodos.
No Moxico, as acusações de feitiçaria e condenação à morte por espancamento ou ingestão de veneno são uma prática arreigada na sociedade local, incluindo entre as mais altas instâncias do governo provincial.
O encobrimento político desses actos por parte da administração local tem remetido o Moxico para um estado de justiça e de engajamento político próprio da era medieval.