Manuel Vicente: o delfim (sucessor) que foi criado pela irmã de Eduardo dos Santos
Fonte: Negócios.pt
Em 2013, no livro "O Poder Angolano em Portugal", editado pela Planeta Manuscrito, o jornalista do Negócios, Celso Filipe, traçou um perfil do vice-presidente de Angola, agora indiciado por corrupção activa.
O vice-presidente da República de Angola, Manuel Vicente foi indiciado quarta-feira, 25 de Fevereiro, pelo Ministério Público, por corrupção activa, no âmbito da chamada "Operação Fizz".
Esta é a segunda vez que o antigo líder da Sonangol é visado pela justiça portuguesa. Em Novembro de 2013 o Departamento Central de Acção e Investigação Penal arquivou um processo no qual estava em causa a eventual prática por Manuel Vicente, Higino Carneiro e a Portmill do crime de branqueamento de capitais, com possível ligação a ilícitos de natureza fiscal.
Na altura o Ministério Público explicava assim a decisão: "vieram aos autos, voluntária e sucessivamente, trazer os elementos documentais de suporte das transacções financeiras detectadas nas suas contas bancárias, assim como fizeram prova de rendimentos compatíveis com as operações referidas".
O caso que foi encerrado em 2013 teve também consequências político-diplomáticas nas relações Portugal-Angola. Antes desta decisão, o Jornal de Angola, órgão oficial do Governo angolano, produziu críticas contundentes a Portugal por causa da investigação a Manuel Vicente.
"Se o Ministério Público em Portugal abrisse um inquérito ao Vice-Presidente de um país da União Europeia ou dos EUA temos a certeza de que os seus nomes não iam fazer manchete nos noticiários dos barões da droga em que se transformou a comunicação social portuguesa. As elites portuguesas ignorantes e corruptas estacionaram no colonialismo mais retrógrado. Continuam a achar que os negros são seres inferiores e se têm uma camisa lavada é porque a roubaram", escreveu o Jornal de Angola em editorial datado de 8 de Novembro de 2013.
E concluía: "Quem tem amigos assim, o melhor é virar-lhes as costas e negociar até com o diabo ou dialogar com os inimigos. É muito difícil dialogar com um país em que parece que ninguém se entende e estão todos virados para o tornar ingovernável. Dizem que o investimento é bem-vindo, mas atacam os investidores angolanos".
Manuel Vicente é uma das figuras mais proeminentes de Angola, tendo-se destacado como presidente da Sonangol. Nessa condição foi o responsável pela entrada da petrolífera angolana no capital do BCP e na Galp, de forma indirecta, através da Amorim Energia.
Em Junho de 2013, o jornalista do Negócios, Celso Filipe, publicou o livro "O Poder Angolano em Portugal – Presença e Influência do Capital de um País Emergente", editado pela Planeta Manuscrito, o qual incluía um perfil de Manuel Vicente que pode ler de seguida na íntegra.
"As suspeitas levantadas em torno do seu número dois não parecem afectar José Eduardo dos Santos, que tem total confiança em Manuel Vicente, o qual entrou para a Sonangol em 1991. A partir de 2000, passou a exercer a presidência da petrolífera, cargo que manteve durante 11 anos. Uma amizade antiga e duradoura e as suas capacidades de gestão foram convencendo José Eduardo dos Santos, que o adoptou como seu delfim e provável sucessor. No início de 2012 deu o primeiro passo nesse sentido, transformando-o em ministro de Estado e da Coordenação Económica. Em Setembro do mesmo ano, após as eleições e na condição de número dois da lista do MPLA, partido vencedor, Vicente ascendeu à vice-presidência do país.
Manuel Vicente, que nasceu em Maio de 1956, em Luanda, foi criado pela irmã mais velha de José Eduardo dos Santos, Isabel Eduardo dos Santos – falecida em Julho de 2008 – que, diz-se, terá desempenhado o papel de sua verdadeira mãe. Isso faz com que, em círculos restritos, Vicente e Eduardo dos Santos se tratem por primos. Isabel também desempenhou um papel de relevo durante os primeiros passos da carreira política do irmão, que Eduardo dos Santos reconheceu de forma emocional ao dar à sua primeira filha o nome de Isabel. A sintonia entre ambos é grande e a atitude reservada é um traço de carácter partilhado pelos dois. A única discórdia visível é no futebol: Eduardo dos Santos é do Porto, Manuel Vicente torce pelo Benfica.
Com casa em Alvalade, um bairro chique e tradicional de Luanda, Vicente é casado em segundas núpcias com Marinela Correia, da qual tem dois filhos. O seu património imobiliário é também constituído por um apartamento em Lisboa e uma moradia no Algarve.
Quando viajava para Lisboa frequentemente, na qualidade de presidente da Sonangol, ficava invariavelmente instalado no hotel Ritz, embora possuísse uma casa na capital portuguesa. Foi ele que protagonizou, em nome da Sonangol, a mais mediática entrada de uma empresa angolana no capital de uma companhia portuguesa, ainda que de forma indirecta, quando em 2006 fechou um acordo com Américo Amorim. Ambos constituíram a Amorim Energia, que passou a controlar 33,34% da Galp.
Manuel Vicente foi também o estratega da entrada da petrolífera angolana no capital do BCP em 2007, ano em que comprou 2% desta instituição financeira por 200 milhões de dólares. Esta aposta na banca portuguesa teve o seu expoente em 2012, quando a Sonangol se tornou o maior accionista do banco, passando a deter 11,6% do capital. A petrolífera tem também 29,9% do Millennium Angola, onde figuram mais dois accionistas angolanos, o BPA (Banco Privado Atlântico) com 15%, e a Globalpactum com 5%. Estes 29,9% valem aproximadamente nove milhões de euros, visto que o capital social do banco é de 29,5 milhões de euros.
O caso BCP é, aliás, outro que ilustra de forma eloquente a estratégia de teia de aranha que os angolanos são hábeis em tecer. Veja-se como os fios se interligam. O BPA é também accionista da Interoceânico que, por seu turno, tem 2% do capital do BCP. Esta Interocêanico, cuja repartição do capital social é desconhecida, mas onde pontificam nomes como Daniel Proença de Carvalho, Francisco Pinto Balsemão, Rui Nabeiro e o ex-embaixador António Monteiro (que foi membro da delegação portuguesa que mediou os acordos de paz em Angola, assinados em Lisboa em 1991), é liderada por Carlos Silva. E Carlos Silva, tido como protegido de Manuel Vicente, acumula este cargo com o de presidente do BFA, onde a Sonangol é accionista.
Carlos Silva, presidente do BFA e vice-presidente do BCP é visto como um protegido de Manuel Vicente.Carlos Silva, presidente do BFA e vice-presidente do BCP é visto como um protegido de Manuel Vicente.
Tal como todos os poderosos angolanos, Manuel Vicente fecha-se em copas com os jornalistas. Enquanto líder da Sonangol, apresentava em conferência de imprensa em Luanda os resultados da petrolífera, e outros momentos de comunicação com os jornalistas eram raros. Contudo, respondia a quase todos os "e-mails" que lhe eram enviados relativos à actividade da Sonangol com um simpático abraço de amizade, embora não esclarecesse qualquer das questões que lhe era colocada.
A Sonangol é um verdadeiro Estado dentro do Estado. As receitas do petróleo financiam o Governo, permitem fazer aquisições fora do país, servem como contrapartidas para empréstimos bancários, alimentam a criação de empresas com sócios angolanos e são também aplicadas para entrar no capital de instituições financeiras, às quais a petrolífera pode posteriormente recorrer para se financiar. O poder do petróleo alimenta muitas bocas e é um gigantesco lençol debaixo do qual a elite tem traçado planos de controlo de sectores de actividade como a banca ou a construção, a pretexto da necessidade de angolanização da economia.
A poucos meses das eleições angolanas de 31 de Agosto de 2012, quando já era ponto assente que seria o número dois da lista do MPLA, Vicente anunciou durante um jantar privado com um grupo de amigos, que depois de contados os votos, a troika iria chegar ao país. As suas palavras foram interpretadas como uma forma irónica de avisar que o Estado iria passar a ter regras de governação mais apertadas, limitando os danos de imagem causados pelas políticas de compadrio, até porque a corrupção continua a ser a palavra-chave nas críticas ao Governo de Angola.
A revelação da sua ligação à petrolífera Colbat, através da Nazaki Oil, terá sido uma das consequências desta promessa, aponta o referido analista angolano. "Como em Angola política e negócios são amantes, admite-se que muitos dos dirigentes do MPLA sejam inimigos de Manuel Vicente no ramo empresarial. Aliás, comenta-se que muitas das descobertas dos negócios em que Manuel Vicente está envolvido se devem a fugas de informação propositadas dos seus opositores, alguns dos quais com influência nos serviços secretos." Descredibilizar Manuel Vicente é, neste registo, uma via que os influentes do regime encontraram para tentar manter o 'status quo'.
Um facto é irrefutável. Manuel Vicente mudou a Sonangol a partir do momento em que começou a liderar a petrolífera, no ano 2000, transformando-a numa empresa de méritos inquestionáveis. Especialistas do sector sublinham que a Sonangol tem quadros altamente eficazes na negociação dos contratos de concessão e de prospecção petrolífera com as multinacionais do sector, tendo também grande 'expertise' em matéria de extracção do ouro negro. A Sonangol tem sido a única empresa de Angola capaz de gerar liquidez, de financiar o Estado e ainda de ser o rosto deste em matéria de aquisições no exterior, particularmente em Portugal.
Manuel Vicente, um engenheiro electrotécnico licenciado pela Universidade de Luanda, em 1983, foi o artífice de uma estratégia com dois pilares – a expansão internacional e a diversificação da carteira de investimentos da Sonangol, a qual foi possível de materializar com o fim da guerra em Angola, em 2002. No domínio dos petróleos, Vicente ganhou competências e aprendeu as muitas minudências deste agressivo sector, ao frequentar cursos de formação profissional em Calgary, Londres, Dallas e Boston.
Na Sonangol deixou um discípulo, Baptista Sumbe, actual número dois da companhia. Na área política, foi tendo treino como vice-presidente da Fundação Eduardo dos Santos. As apostas na ampliação dos interesses da Sonangol contaram sempre com o apoio de Carlos Silva, um quadro do sector financeiro, e do advogado angolano Fernando Santos, seu amigo de longa data, que o auxiliou a concretizar a entrada da petrolífera no Millennium Angola.
Carlos Feijó, jurista e ex-ministro de Estado de Angola, também o ajudou a abrir portas em Portugal, em especial nas relações com escritórios de advogados como o da PLMJ, do qual José Miguel Júdice é um dos sócios. Durante as suas estadas em Lisboa, Manuel Vicente jantava amiúde com António Mexia, presidente executivo da EDP.
Entre as muitas empresas que fazem parte do universo empresarial da Sonangol, contam-se a Sonangol USA (com sede em Houston), a Sonasia (com sede em Singapura) a Sonangol Congo, a Sonangol Shipping (transporte marítimo), a ESSA (empresa para sondagens petrolíferas), a MST Telecom, a SonAir (aviação) e a AAA, uma empresa de serviços financeiros que abarca a gestão de seguros de risco integrados para o sector petrolífero.
A banca foi também uma aposta estrutural. Além das participações no BCP e no Millennium Angola, a Sonangol tem 17,5% do capital do BAI (Banco Africano de Investimentos), uma posição qualificada no também angolano BPA que é também accionista do BCP através da Interoceânico, e uma quota residual de 1,04% no BCI (Banco de Comércio e Indústria).
A Sonangol controla 38,45% da Enacol (Empresa Nacional de Combustíveis de Cabo Verde), onde a Galp possui uma quota de 48,28%, e tem 20% do capital da Mota-Engil Angola. E agora adivinhe quem são os outros accionistas. Ei-los: os já referenciados BPA e Globalpactum, que estão também no Millennium Angola, com 11% e 9% do capital e ainda a igualmente angolana Finicapital, com outros 9%.
Esta empresa foi formalmente constituída em Outubro de 2010. A Mota-Engil Portugal transferiu de seguida, para esta subsidiária, activos no valor de 325 milhões de dólares, tendo recebido 160 milhões de dólares pela venda de 49% do capital a estes três accionistas angolanos.
Uma outra empresa, a China Sonangol International Holding, com sede em Hong Kong, tem um particular relevo. A revista "The Economist", numa investigação que publicou na sua edição de 13 de Agosto de 2011, relata a existência do sindicato de negócios 'Queensway' que se chama a si mesmo de China Sonangol, o qual "nos últimos anos assinou contratos que valem biliões de dólares, de petróleo, minerais e diamantes" provenientes de África. "Os negócios são misteriosamente guardados em segredo. Contudo, garantem aparentemente proveitos assinaláveis ao sindicato de negócios 'Queensway'".
A revista inglesa refere que este sindicato nasceu com base em laços que remontam à Guerra Fria, criados por Sam Pa, que frequentou a academia militar de Baku (ex-União Soviética, actual capital do Azerbeijão), onde conheceu o actual presidente da República de Angola. A vida deste chinês está envolta em mistério, sendo apontado como líder do grupo Queensway, que explora concessões diamantíferas em África e também do Fundo Internacional da China, uma empresa privada com sede em Hong Kong, mas que terá relações muito próximas com o Governo de Pequim. Sam Pa, também travou conhecimento com Hélder Bataglia em 2004, uma ponte que se revelou essencial para que a parceria avançasse.
Esta aliança decorre, em paralelo, àquela que foi firmada entre os dois Estados, o angolano e o chinês. O manto de suspeitas no qual a "The Economist" envolveu estas e outras personalidades não mereceu quaisquer comentários ou esclarecimentos dos mesmos.
Em 2010, a Sonangol voltou a engordar o seu múltiplo portefólio de negócios, quando José Eduardo dos Santos anunciou que a subsidiária Sonangol Imobiliária iria assumir a construção das zonas urbanas de Cacuaco, Zambo e Kilamba Kiaxi, que até então eram da responsabilidade do Gabinete de Reconstrução Nacional, liderado por 'Kopelipa'.
A Sonangol Imobiliária passou assim, por decisão do presidente da República, a ter um papel de destaque na gestão de imóveis, venda de casas e arrendamento urbano, além de ter a seu cargo investimentos em urbanizações nas províncias de Cabinda e Kuando Kubango. Poucas semanas depois deste anúncio, fechou acordo para a entrada no capital da Mota-Engil Angola, dispondo assim de uma construtora à qual poderia passar as obras que fora incumbida de concretizar. Mais uma vez, as peças do puzzle parecem encaixar-se na perfeição.
A par de Portugal e da China, e das multinacionais petrolíferas, com as quais forçosamente tem de fazer negócios, a Sonangol tem também uma aliança antiga com a construtora brasileira Odebrecht. Os brasileiros chegaram a Angola em 1984 e nunca mais de lá saíram, criando laços perenes com o poder. Emílio Odebrecht, presidente da empresa, visita Luanda de dois em dois anos e é sempre recebido por José Eduardo dos Santos.
Em paralelo, as três campanhas eleitorais do MPLA foram sempre concebidas por 'marketeers' brasileiros. A de 1992 foi concebida por Ricardo Noblat e de 2008 foi desenhada por Carlos Monforte, ambos ao serviço da empresa Propeg. Em 2012, o arquitecto da campanha foi João Santana, que trabalhou para o PT (Partido dos Trabalhadores) do Brasil e foi responsável pelas máquinas de propaganda que conduziram à eleição, primeiro de Lula da Silva, e depois de Dilma Rousseff.
A Odebrecht é uma cliente de longa data dos serviços da Propeg. Em Julho de 2012, a Odebrecht passou a integrar um consórcio para a construção de uma fábrica de bioetanol em Angola, da qual fazem parte a Sonangol e a Damer. O projecto é de 250 milhões de dólares e os brasileiros têm 40%, a Sonangol 20% e a Damer os outros 40%. Esta empresa, afiança o site "Maka Angola", será controlada por Manuel Vicente e pelos generais 'Kopelipa' e Leopoldino do Nascimento.
A Odebrecht faz também parte do consórcio (com 15%) que faz a prospecção petrolífera do Bloco 16 no 'offshore' de Angola, que é liderado pela Maersk, com 65% do capital, enquanto a Sonangol possui 20%. A Odebrecht ficou ainda com a responsabilidade de gestão dos supermercados Nosso Super e EM 2012 iniciou as obras da barragem hidroeléctrica de Laúca, no Kwanza Norte, que custará ao Estado angolano três mil milhões de dólares. A cerimónia de entrega da primeira fase do empreendimento à construtora brasileira foi testemunhada por Manuel Vicente, já na qualidade de ministro da Coordenação Económica.
Como herança na Sonangol, Manuel Vicente deixa iniciada a construção da refinaria do Lobito, uma obra fundamental para evitar o contra-senso de Angola ser forçada a importar gasolina, por não possuir uma unidade industrial capaz de refinar esta matéria-prima. Foi o próprio Vicente, já na qualidade de vice-presidente, que colocou a primeira pedra da obra em Dezembro de 2012.
Esta refinaria, que implica um investimento de oito mil milhões de dólares e terá capacidade para processar 200 mil barris por dia, deverá estar concluída em 2014. E Angola precisa de apressar o passo, até porque segundo estimativas do Banco de Mundial as suas reservas petrolíferas deverão apenas durar mais 21 anos (contados a partir de 2012), podendo produzir uma média de 1.9 milhões/dia até 2025. Em contrapartida, a Nigéria – a grande rival angolana em matéria de petróleo – tem reservas estimadas para 41 anos.
É neste quadro que se insere a aposta no projecto Angola LNG, no Soyo, província do Zaire, de construção de uma fábrica de gás natural, a qual permitirá diversificar a receita do Estado. Esta unidade, uma parceria entre a Sonangol, a Chevron, a BP e a Eni (que até 2012 foi aliada da petrolífera angolana na Galp), vai ter capacidade para exportar 5,2 milhões de toneladas de gás natural, possivelmente já a partir deste ano. O investimento na unidade foi de 10 mil milhões de dólares.
O poder que Manuel Vicente possuía na Sonangol era, por assim dizer, unipessoal. Com a sua ida para o Governo, a petrolífera deixou de desempenhar as funções de Fundo Soberano (foi criado um de raiz em cuja administração está o filho do presidente da República, José Filomeno dos Santos) e consta que poderá também perder o privilégio de atribuição de licenças para a prospecção petrolífera, passando estas competências a serem exercidas pelo Executivo angolano.
Agora que se tornou político, Manuel Vicente cedeu o palco de estrela empresarial a Isabel dos Santos, o terceiro elemento do triunvirato essencial do poder angolano".