MALDADE E IGNORÂNCIA GERAM CAOS E INSTABILIDADE POLÍTICA
Acabo de ler um post nas redes sociais, sem qualquer argumentação jurídica de fundo, a sustentar a necessidade imperiosa do projecto de “Lei sobre os Mandatos das Chefias das Forças Armadas, Polícia Nacional e Serviços de Inteligência”. Prevê-se que esta lei venha a ser aprovada no próximo dia 21 de Julho, facto que, a confirmar-se, deve ser motivo de preocupação geral.
É notório que a ambição de querer fazer evidenciada por membros do círculo do poder acarreta o risco de colocar em perigo a estabilidade política do país e também de contribuir para a fragilidade política pessoal do presidente da República José Eduardo dos Santos (JES), alvo de palavras elogiosas, mas eivadas de veneno.
Para analisar esta questão, não vou ater-me ao conteúdo integral da proposta de lei, mas procurarei focar apenas detalhes fundamentais e dignos de preocupação.
O vazio substantivo do projecto de Lei
Em primeiro lugar, este projecto de lei colide com a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas – LDNFA (Lei n.º 2/93, de 26 de Março), bem como com a Lei de Segurança Nacional – LSN (Lei n.º 12/02, de 16 de Agosto). Ao invés, a nova lei deveria, obviamente, ter seguido os princípios estruturantes das duas anteriores.
Em segundo lugar, na condição de especialista em matéria de direito, segurança e defesa, contando já vários anos de carreira, analisei as causas elencadas para a cessação de mandato (artigo 2.º).
O texto publicado por Rui Verde no site Maka Angola falha a questão fundamental: o analista refere o facto de a “exoneração” não figurar entre as causas, mas a questão fundamental, neste caso, não se prende com a definição da exoneração enquanto causa, uma vez que a exoneração surge sempre como consequência de uma causa, o que pressupõe a tomada de tal medida ou decisão dentro do âmbito dos poderes discricionários atribuídos pela CRA ao chefe de Estado, enquanto comandante-em-chefe. Ou seja: implicitamente, a cessação de mandato implica a exoneração das chefias em exercício de funções nas condições apresentadas na presente proposta de lei, e ainda a nomeação de novas chefias. A meu ver, não é este pressuposto que constitui o pomo da discórdia.
O que eu critico sobretudo é o facto de esta proposta de lei ser de um vazio substantivo que lhe retira qualquer força e segurança jurídica que garanta a sua aplicação de acordo com os objectivos definidos.
Basta olhar para as “causas” apontadas para a cessação de mandato das referidas chefias e seus adjuntos. A alínea c) do artigo 2.º diz o seguinte: “Detecção de incumprimento grave e reiterado de normas legais ou regulamentares que disciplinem a actividade das instituições militares, policiais e de inteligência.”
Ora, estamos perante um perigo grave e um pressuposto de leviandade. Talvez o objectivo seja fazer de tolo quem vier a ser eleito futuro presidente e comandante-em-chefe das Forças Armadas.
O proponente, nesta alínea c), não só mostra a sua ignorância jurídica, como revela não entender nada de segurança. Senão vejamos:
Que mecanismos serão usados para a “detecção de incumprimento grave”? Aliás, antes de mais, o que se pode entender por “detecção de incumprimento grave”? E por “reiterado”? Não podemos olvidar que estamos no domínio da defesa e segurança, órgãos de elevada sensibilidade que não se compadecem com incumprimentos graves, e menos ainda reiterados.
O perigo da indisciplina
Se for ignorado o estatuto especial destas questões, estaremos perante uma situação que propiciará a indisciplina, logo, passível de conduzir a golpes de Estado, sobretudo ao submeter-se o comandante-em-chefe, para proceder à exoneração dos seus titulares, à dependência de comportamentos que ferem de forma grave e reiterada os princípios e regulamentos que regem a actividade dos órgãos de defesa e segurança, e sem que se definam os mecanismos através dos quais se pode aferir tal incumprimento e o grau da sua gravidade (cf., por exemplo, a LSN, n.º 12/02, artigos 30.º e 31.º, sob a epígrafe do Capítulo IV – Fiscalização Política).
Por outro lado, parece que se pretende legitimar uma situação em que há um peso e duas medidas: caso o futuro presidente da República eleito seja o cidadão A, então poderá evocar quando quiser e bem entender a “detecção de incumprimento grave” das normas; e ninguém ousará questionar e nem se saberá como e em que medida foi feita tal aferição; casoo eleito seja o cidadão B ou C, cria-se com este pressuposto uma armadilha que pode levar à instabilidade política por manifesta indisciplina de qualquer uma destas chefias, diante de uma medida de exoneração.
O fantasma da Guiné-Bissau
Aliás, com esta brecha que se abre subtilmente, poderão evocar-se quaisquer motivos fúteis para se contrapor a decisão de exoneração do comandante-em-chefe e se criar um clima de desobediência e caos que conduzirá o país à instabilidade. Isto acontece ou aconteceu em alguns países africanos, sendo a Guiné-Bissau, entre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), o exemplo mais evidente.
É portanto absoluta a desconformidade deste projecto de lei com o postulado constitucional, na medida em que o exercício feito para se encontrar um mecanismo legal capaz de cercear determinados poderes discricionários do presidente da República, os quais emanam da CRA de 2010, resulta em assassínio da Lei Magna. Ou então estamos perante erros graves de interpretação e de conceituação, ou frente a uma intenção velada de afundanço do presidente JES.
O papel do Conselho de Segurança Nacional
Curiosamente, Rui Verde, o analista do Maka Angola, fala numa única restrição que a Constituição impõe ao poder de exoneração (e também de nomeação) das chefias militares, da polícia nacional e dos órgãos de inteligência por parte do presidente da República: “a audição do Conselho de Segurança Nacional”, que, segundo diz, “nem sequer está prescrita como vinculativa”. Na verdade, não se trata de uma restrição, mas sim, pelo contrário, de uma prerrogativa que se concede aos titulares dos órgãos de defesa e segurança e de inteligência de apoiar o presidente da República nestas matérias (cf. LSN, artigos 16.º a 22.º). É preciso compreender que o Conselho Superior de Segurança Nacional não é um órgão deliberativo, mas sim de consulta do presidente da República, de maneira que a sua actuação e o seu papel dentro deste âmbito também devem ser (igualmente) definidos por lei.
Conclusão
Para concluir, aconselha-se prudência, por parte da Assembleia Nacional, na aprovação deste diploma, caso não sofra qualquer alteração nas alíneas referidas. Aconselha-se também uma nova redação do n.º 4 do artigo 1.º, devendo os mandatos ser fixados com vista à defesa dos supremos interesses do Estado.
Deve competir ao presidente da República, enquanto comandante-em-chefe das Forças Armadas, avaliar o desempenho destes órgãos e proceder à remodelação das suas chefias sempre que a situação impuser tal necessidade.
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