A UNITA E O FUTURO: UMA REFLEXÃO
É um facto que o povo está cansado do regime de José Eduardo dos Santos. A reacção às mais recentes atitudes conhecidas dos filhos (há outras ainda desconhecidas do grande público), como a compra do relógio (ou das fotografias) por 500 mil euros ou a aquisição de um luxuoso iate por 30 milhões de dólares, é um símbolo claro e inequívoco do ocaso do longo consulado de JES. Estas atitudes constituem, de resto, a “gota de água” que encheu o copo da paciência popular.
Estamos perante, de novo, um momento histórico para a UNITA e para a forma como esta poderá ou não representar uma alternativa ao actual “estado de coisas”.
José Eduardo Agualusa denunciou a atitude da UNITA, afirmando o que muitos pensam: que a UNITA é uma espécie de “leal” oposição ao MPLA e que o seu papel é legitimar umas eleições que sabe que perderá sempre, porque serão fraudulentas, contribuindo para a manutenção de um estado de coisas completamente apodrecido.
O escritor angolano defende que bem melhor faria a UNITA em recusar-se a participar nas eleições ou então em concorrer aliada com todos os outros partidos da oposição, de modo a ganhar. Esta segunda alternativa não parece consentânea com a lógica da fraude. Em eleições fraudulentas, a UNITA tanto perde se concorrer sozinha como se concorrer coligada. Mas essa não é a parte interessante da argumentação de Agualusa. O ponto importante é o apelo ao boicote eleitoral por parte da UNITA, com o argumento de que o jogo eleitoral está viciado e de que, ao concorrer, a oposição apenas está a apoiar o MPLA e JES, garantindo-lhes um show democrático que não passa de uma ilusão. Creio que Luaty Beirão defendeu algo semelhante recentemente.
Este é um dado da questão.
Outro dado foi adiantado num recente artigo de Rafael Marques. Transcrevo as ideias essenciais para o argumento: “A UNITA realizou manifestações em várias províncias do país para exigir eleições transparentes, tendo levado dezenas de milhares de pessoas à rua”, acrescentando que “a UNITA, apesar da sua reservada liderança e do seu discurso anódino, tem uma extraordinária capacidade de mobilização de massas. Tem vindo a multiplicar a sua base de apoio, também conhecida como ‘o povo da UNITA’. Não tem usado medidas de coacção nem actos de corrupção para arregimentar militantes e simpatizantes, porque também não tem poderes para tal. Hoje, os municípios mais populosos de Luanda – Viana e Cacuaco – tornaram-se bastiões da UNITA, reflectindo as mutações demográficas e de mentalidade do pós-guerra. Essas mutações revelam também as consequências da circulação de informação, na capital, sobre a corrupção e outros maus actos de governação”.
Comecemos pelo argumento de José Eduardo Agualusa e Luaty Beirão, para depois nos debruçarmos sobre o paradoxo enunciado por Rafael Marques.
Um boicote eleitoral como o defendido por José Eduardo Agualusa e Luaty Beirão é uma táctica clássica no combate às ditaduras. Basta recordar várias eleições presidenciais em Portugal no tempo do Estado Novo.
Analisemos concretamente os escrutínios de 1949 e de 1958.
Em 1949, a oposição ao regime de Salazar escolhe como candidato o general Norton de Matos, bem conhecido de Angola, onde foi alto-comissário de grande envergadura e fundou a cidade de Nova Lisboa (hoje Huambo) no Planalto para onde pretendia transferir a capital de Angola.
A campanha de Norton de Matos registou grande sucesso entre a população, que acorreu, entusiasmada, a apoiá-lo em vários comícios. No entanto, a oposição encontrava-se muito dividida entre aqueles que achavam que o general devia ir até ao fim e os que defendiam a sua desistência para não legitimar o regime. Escreve a historiadora Ana Sofia Ferreira que “a pretensão [de ir às urnas] foi apoiada pela ala direita da oposição que sempre defendeu a participação nas eleições sob quaisquer condições, mas foi recusada pelo PCP que defendia que não estavam criadas condições mínimas para participar na campanha eleitoral”. Norton de Matos acabou por desistir da sua candidatura, e o candidato do regime, marechal Óscar Carmona, ganhou as eleições de forma esmagadora, com cerca de 99% dos votos.
E durante sensivelmente dez anos a oposição ao regime ficou inoperante e desmoralizada.
O sobressalto seguinte, que acabou por anunciar o fim do regime (embora só 16 anos depois!), foi a candidatura do general (hoje marechal) Humberto Delgado à presidência, em 1958. O regime tremeu e foi obrigado a recorrer a uma fraude eleitoral demasiado óbvia, que lhe retirou a legitimidade sociológica, e a assassinar o general anos depois. Além disso, o regime pôs fim ao processo de eleições directas para a presidência da República. O presidente passou a ser nomeado por um Colégio Eleitoral.
Desta vez, o candidato do regime obteve “apenas” 65% dos votos, ao passo que a oposição conquistou os restantes 35%.
As eleições presidenciais portuguesas de 1958 foram muito importantes, porque mostraram que o povo já não apoiava o regime e estava disposto a aceitar um governo democrático dirigido pela oposição. Isto foi notório nas manifestações anteriores às eleições e nos protestos posteriores à fraude eleitoral.
É importante fazer sentir ao poder político que já não goza do consentimento do povo para governar e que a qualquer momento o povo pode passar o poder para outras mãos. Em 1961, Salazar só não foi afastado do poder porque o general encarregado da tarefa preferiu ir passar férias ao Algarve ao invés de avançar rapidamente.
Algo de semelhante aconteceu recentemente na Venezuela. Nas eleições parlamentares de 2005, a oposição decidiu retirar-se do processo eleitoral por considerar que não havia garantia de eleições livres e justas. O partido do governo obteve assim a maioria absoluta e legislou como quis.
Já em 2010, a oposição concorreu e retirou a maioria absoluta ao regime. Em 2015, ganhou as eleições.
É certo que esta vitória da oposição das urnas não levou à queda do regime de Chavez/Maduro, outrossim criou uma situação de pré-guerra civil em que a Venezuela vive hoje.
Os exemplos de Portugal e da Venezuela levam a duas conclusões um pouco divergentes.
A não participação nas eleições por parte da oposição entrega “de bandeja” o poder à ditadura, e não permite aferir da falta de consentimento social de que o governo goza.
Por outro lado, a participação em eleições, e mesmo a vitória, podem não ser condições suficientes para fazer cair o regime. Não o foram em Portugal, onde o regime só caiu 16 anos depois do escrutínio de 1958, através de um golpe militar, e não o foram na Venezuela, onde parece que, apesar da contestação popular, o regime só sairá também por meio de um golpe militar ou de um levantamento popular de estilo revolucionário.
Por outro lado, a participação em eleições, e mesmo a vitória, podem não ser condições suficientes para fazer cair o regime. Não o foram em Portugal, onde o regime só caiu 16 anos depois do escrutínio de 1958, através de um golpe militar, e não o foram na Venezuela, onde parece que, apesar da contestação popular, o regime só sairá também por meio de um golpe militar ou de um levantamento popular de estilo revolucionário.
Adaptando a Angola estes exemplos, parece ser de considerar que a concorrência dos partidos às eleições é positiva, porque permite desgastar o poder e aferir o nível de consentimento social de que goza. Mas no final de contas, enquanto as eleições forem susceptíveis de fraude, não será através destas que o regime mudará, mas sim através de uma intervenção militar ou popular revolucionária. Participar em eleições é uma forma de pressão como outra qualquer, embora não garanta a mudança.
O outro dado da questão é aquele adiantado por Rafael Marques: a descontinuidade presente entre a liderança da UNITA e as massas populares.
Parece claro que a UNITA tem de passar por um processo de renovação profundo. E essa renovação consistiria em três aspectos diferentes.
O primeiro aspecto, correspondente a uma maior abrangência étnica e histórica, seria a mudança/complementação do nome. O nome UNITA talvez esteja demasiado ligado à guerra. Provavelmente, ainda está muito colado a determinadas visões que foram inculcadas unilateralmente nos últimos 15 anos.
Para a população em geral, justa ou injustamente, o nome UNITA ainda terá um sentido negativo proeminente.
O segundo aspecto seria a designação de uma nova liderança, mais jovem e mais activa. Não quer dizer que os que estão fossem afastados. Quer dizer que a alternância e a renovação deveriam começar por aqueles que desejam a alternância no poder político. Liderando pelo exemplo.
Finalmente, a UNITA deveria apresentar um programa novo e de futuro, virado para a juventude, a maioria larga da população angolana, que representasse um corte definitivo com este regime e sugerisse uma verdadeira alternância de políticas, e não meramente de pessoas.
Não sou da UNITA e não conheço ninguém da UNITA. Estas anotações provêem da observação dos factos e da realidade.
O momento da mudança em Angola chegou. Compete aos seus actores principais dar resposta rápida e eficiente para evitar o mergulho no caos.