OS DEVERES DOS JURISTAS: OS CASOS DE CARLOS FEIJÓ E BENJA SATULA
As vestes talares que os juristas envergam remetem para os primórdios da Justiça: a ligação à Antiga Roma e ao sacerdócio. Ora, esta dupla origem define, na sua essência, quais os deveres de um jurista em qualquer parte do mundo, e em Angola também.
O jurista desempenha um papel duplo na sociedade, enquanto intérprete e aplicador do Direito. Por um lado, deverá ser o garante da Justiça, isto é, da atribuição a cada um do que é seu, da salvaguarda dos direitos individuais e da protecção dos mais fracos. Queixava-se Cálicles, no diálogo platónico Górgias, de que a Justiça o colocava em igualdade perante os mais fracos, e nessa medida o Direito acabaria por servir como refúgio dos mais fracos perante os mais fortes. Na realidade, é a postura contrária a Cálicles que a Justiça e o Direito devem ter antes de tudo.
Como ordenação da vida social, o Direito exige dos seus cultores uma preocupação com a Justiça, os direitos individuais, os mais fracos e, no final de contas, aquilo a que nos dias de hoje chamamos o Estado de Direito. O jurista não é um técnico neutro, pois a construção e ordenação de uma sociedade não são actividades neutras. Há sociedades justas e injustas, boas e más. Tirânicas e livres.
O jurista tem o dever teleológico (isto é, ligado às finalidades) de pugnar por uma sociedade ordenada de acordo com a Justiça.
Em segundo lugar, o dever do jurista é técnico. O jurista deve colocar ao dispor do cidadão a sua capacidade técnica para, dentro da lei, defender da melhor forma possível os seus interesses. O jurista não é um moralista, mas sim um perito em Leis que as entenderá e procurará nelas a melhor forma de servir os interesses dos seus clientes. Nesta medida, a par do dever teleológico, o jurista tem o dever prático de servir os seus clientes.
Esta conjugação de deveres é obviamente dialéctica e muitas vezes entra em confronto, pois uma das regras da Justiça diz que todos têm direito a um advogado, a serem julgados em tribunal e a defenderem os seus interesses, mesmo quando esses interesses pareçam injustos.
Caberá a cada jurista criar as condições óptimas para, na sua vida prática, conjugar os seus dois deveres fundamentais, dando o sinal possível de coerência à sociedade, e lembrando-se de que o seu primeiro papel é promover e preservar o Estado de Direito.
Angola não é um Estado de Direito. O país caracteriza-se por uma imensa desigualdade perante a lei e o arbítrio, e pelo desrespeito dos direitos individuais.
Contudo, muitos acreditam que se inicia agora o caminho certo rumo a esse Estado de Direito.
Nesse caminho, é fundamental o papel dos juristas enquanto sinalizadores da ordenação da vida social que se pretende. Este caminho colocará sem dúvida escolhas difíceis aos juristas, e dessas mesmas escolhas dependerá o futuro de Angola.
Os juristas em Angola, antes de tudo, têm de pensar no seu dever perante a Justiça e as expectativas e necessidades da população. Não se podem esquecer desse dever e de tudo submeterem ao dever prático de defesa do cidadão concreto, que também existe.
O que tem precisamente de ser levado a cabo é essa difícil sinalização e esse equilíbrio precário entre a defesa da implantação do Estado de Direito em Angola e os interesses concretos de cada um.
Vejamos exemplos concretos.
Carlos Maria Feijó, advogado e professor universitário que conviveu de perto com José Eduardo dos Santos e que foi o grande obreiro da institucionalização da ditadura da pobreza, surge agora como novo redactor das leis de “abertura” de João Lourenço. Isto é um erro trágico. Novas leis precisam de novas pessoas. Um novo conceito de Justiça necessita de um novo redactor. A prática que justifica a contratação deste distinto jurista por ser quem mais sabe acerca dos mecanismos do direito público em Angola – pois foi ele que os fez – não deve sobrepor-se ao símbolo da Justiça e da exigência de um novo espírito legal que, em boa medida, derrube o anterior. Os sinais assim emitidos para a sociedade angolana não são de melhoria, mas sim de continuidade.
Outro exemplo é o de Benja Satula, um dos mais brilhantes juristas da nova geração. Satula tem escrito activamente sobre a situação no tempo de José Eduardo dos Santos. Promoveu a petição contra a nomeação de Isabel dos Santos para a presidência da Sonangol, e agora surge como advogado desta num caso que a vai opor à Sonangol e no qual a sua presidência será discutida. Sejamos claros: Satula não deveria fazê-lo. Não se trata tanto de haver um conflito de interesses, mas sim de falta de consistência ética: ele era contra a nomeação de Isabel dos Santos para a Sonangol, e agora vai, de certa forma, defender a sua prestação nesse cargo.
Trata-se, mais uma vez, dos sinais emitidos para a sociedade angolana. Os ordenadores da vida social têm de apresentar uma visão consistente à população. É evidente que Isabel dos Santos precisa de advogado e que tem direito ao melhor advogado a que consiga aceder. Mas certamente há outros advogados em Luanda para além de Satula, e Satula, se quer ser coerente com as posições que assumiu como referente social, não deve defender o que antes atacou. As considerações sobre Justiça devem, neste caso concreto, sobrepor-se às considerações práticas.
Benja Satula deve perceber que está a ser usado politicamente para dar um sinal de desestabilização e incoerência na construção de uma Angola mais justa. Somente no caso de Isabel dos Santos não ter outro advogado que a defendesse deveria Benja Satula assumir esse papel.
Voltamos, assim, ao início. Os juristas não são meros técnicos. São também construtores e ordenadores da sociedade em que queremos viver. E é essa a reflexão que têm de fazer quando tomam decisões que afectam toda essa sociedade.