Os grandes impérios de Angola foram construídos à custa do Estado - Justino Pinto de Andrade
Fonte: Expresso.Sapo.pt
Divulgação: Planalto De malanje Rio capôpa
É legítimo desconfiar da origem das grandes fortunas angolanas, afirma, em entrevista ao Expresso, Justino Pinto de Andrade, professor universitário, comentador político e presidente do Bloco Democrático, um pequeno partido sem expressão parlamentar em Angola.
Aos 66 anos, Justino Pinto de Andrade, diretor da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica de Angola, comentador político e presidente do Bloco Democrático, um partido sem expressão parlamentar, assume-se do outro lado da barricada na luta pela democratização de Angola.
Não é o seu primeiro combate. Sobrinho de Mário Pinto de Andrade, presidente e fundador do MPLA-Movimento Popular de Libertação de Angola, participou ativamente ao lado do seu tio e de seu irmão Vicente na luta pela independência, acabando por ser preso em 1969 e enviado para o Tarrafal, Cabo Verde, de onde só viria a sair à data de libertação do campo, em 1 de maio de 1974. Estudante de Medicina por esses dias, a detenção fê-lo mudar de rumo.
"Os anos que passei detido em Cabo Verde permitiram-me perceber que o meu papel não era dentro de um hospital a fazer banco, operações e a dar consultas. Percebi que tinha muito mais valor e que me sentiria mais realizado numa intervenção mais abrangente. O quadro que se apresentava, e, sobretudo, o distanciamento com que eu passei a ver a sociedade a partir de Cabo Verde apelava a uma formação que me permitisse ter uma maior intervenção pública sem estar sujeito aos laços pessoais que a Medicina cria".
Depois da libertação forma-se em Economia, em Luanda, e haveria de voltar aos bancos da universidade da capital angolana para frequentar durante quatro anos o curso de Direito, "só mesmo por curiosidade. Queria saber aquilo que os juristas sabiam", contou ao Expresso.
Depois da independência, declarada em 11 de novembro de 1975, voltaria a ser detido, acabando por romper definitivamente com o MPLA.
"Na minha família temos uma cultura de liberdade muito grande e procuramos não confundir as relações familiares com a política. Fomos educados a respeitarmo-nos uns aos outros", diz, para logo acrescentar: "O meu irmão Vicente esteve sempre comigo em todos os combates políticos desde a independência. E agora bati com a porta, e com estrondo, e o meu irmão acha que deve continuar lá. Prefiro não fazer de conta. Prefiro mesmo estar deste lado da barricada. Acho muito mais saudável o indivíduo quando rompe, romper mesmo. E eu rompi."
De passagem por Portugal para dar uma conferência na Universidade do Porto, analisa em entrevista ao Expresso o estado da democracia angolana e da liberdade de expressão bem como as relações económicas e políticas entre os dois países, seis meses passados sobre a última crise, em outubro do ano passado.
Portugal está a ser "desleal" com Angola quando investiga judicialmente altas figuras do Estado angolano, tal como escreveu em novembro do ano passado o "Jornal de Angola"?
Não. As investigações têm a ver com a Justiça, não são questões que tenham a ver com os partidos políticos. A Justiça é feita para os cidadãos comuns e também para os políticos. Se os políticos são suspeitos de ter cometido alguma infração, penso que a Justiça não se deve intimidar porque caso contrário deixa de ser Justiça para todos e passa a ser só para alguns. Neste caso concreto, importa ver se há razões bastantes que justifiquem essa investigação e isso compete às próprias autoridades judiciais e não aos políticos. Se há uma interferência política que os coloque acima da Justiça é o descrédito para própria Justiça e para o país. Quando a Justiça portuguesa investiga alguém, em princípio é porque há suspeitas do cometimento de algum ilícito, mas por vezes, alguns políticos supõe de que a Justiça é apenas para os cidadãos e não para eles próprios. Daí que, quando são objeto de alguma investigação reagem ignorando que são os próprios políticos que elaboram as leis, supostamente com caráter universal e abstrato.
Quem é que mais perdeu com o adensar das relações entre os dois países?
Penso que não houve até agora desenvolvimentos negativos para ambos os lados. As relações entre Angola e Portugal continuam. Os portugueses que estão em Angola continuam a trabalhar, até porque são necessários. Mas houve, de facto, o temor de represálias contra eventuais interesses portugueses, só que é preciso não esquecer que, se há portugueses em Angola, também há angolanos em Portugal. Hoje, a situação está um pouco invertida e há maior necessidade por parte dos portugueses de emigrarem para Angola para trabalhar, mas há alguns anos era o contrário. Criou-se aquela imagem de que estávamos em risco de desencadear um conflito social, mas não me parece que tenha acontecido.
Em entrevista à SIC, em junho do ano passado, o Presidente José Eduardo dos Santos disse que as relações com Portugal não estavam isentas de "problemas", mas que decorriam num "quadro de amizade e grande compreensão" apesar de haver "reminiscências do passado bastante localizadas". A quem é que, em sua opinião, se refere o Presidente do seu país?
Não sei. Talvez a ele próprio. Esqueceu-se que as relações entre Angola e Portugal envolvem pessoas. Tanto quanto sei, há também personalidades angolanas que têm aplicações financeiras em Portugal. Na altura em que essas personalidades fazem as suas aplicações financeiras em Portugal não estão a estabelecer uma relação entre colonizado e colonizador, mas sim uma relação entre quem tem poupanças e necessidade de aplicá-las e quem tem necessidade de absorver essas poupanças. Nessa altura, as pessoas esquecem-se da relação colonizado-colonizador, mas quando se gera algum conflito que ponha em causa a imagem dos decisores então vão ao fundo do baú buscar uma velha relação que existiu, mas que temos de fazer todo o possível por relativizá-la. Não nos vamos manter prisioneiros para todo o sempre de uma relação que já pertence ao passado. Hoje, os portugueses quando vão para Angola não vão como colonizadores. Penso também que os interesses angolanos quando se instalam aqui em Portugal não o fazem como interesses colonizados, mas como interesses de cidadãos que têm recursos que procuram rentabilizá-los fora do país.
O que poderá acontecer na relação entre Portugal e Angola se o Ministério Público português decidisse acusar os tais altos dirigentes angolanos?
Não sei de que são acusadas essas personalidades, penso que têm a ver com eventuais ilícitos económicos. Mas se alguém cometeu algum ilícito deve ser responsabilizado por isso e não estar a aprisionar um país inteiro a eventuais ilícitos praticados por algumas personalidades angolanas. Se fosse um cidadão comum angolano a cometer um ilícito desses, naturalmente que as autoridades portugueses teriam toda a liberdade para investigar e acusar, mas tratando-se de cidadãos com responsabilidades políticas elevadas não parece que seja justo que sejam isentados das suas próprias responsabilidades. Os nossos políticos é que têm de cuidar de proteger a sua imagem não cometendo ilícitos fora do país, porque se o fazer têm de se sujeitar à justiça desses países.
A "mão invisível" do regime
No seu blogue denunciou recentemente a estratégia seguida por Luanda para impedir uma manifestação de vendedores ambulantes e o desaparecimento de dois ativistas. O aparelho de Estado angolano é politicamente intolerante e não respeita a diferença?
É uma herança da história de Angola. Quem manda hoje em Angola ou é fisicamente alguém que esteve vinculado àquele poder totalitário do passado, que não tinha nenhuma máscara de pluralidade, mas atualmente tem uma cobertura externa de pluralidade mas culturalmente são a mesma coisa. Se olharmos para as práticas dos principais atores do poder atual vê-mos que não têm muita diferença em relação ao que foi o poder de partido único. O que prevalece no subconsciente dessas pessoas é a cultura da intolerância. Estas pessoas não são diferentes, procuram apenas adaptar-se o mínimo possível às novas circunstância. Fizeram uma aparente abertura, mas do ponto de vista da sua formação política e cultural são precisamente a mesma coisa. De tal maneira que reagem como reagiam no passado.
Em julho de 2012 - a um mês das eleições gerais de agosto - a rádio Ecclesia, emissora católica de Angola, onde tinha uma crónica semanal e fazia análise de imprensa, rescindiu o contrato que tinha com o senhor há mais de dez anos por alegada falta de imparcialidade. É presidente do Bloco Democrático mas o seu partido até estava legalmente impedido de ir a votos. Na altura disse que já estava à espera e que foi afastado por uma "mão invisível". A quem pertence essa "mão invisível"?
Acho que ainda continua invisível [sorri com ironia] porque ninguém assumiu a responsabilidade desse ato. É evidente que essa mão invisível tem de ter uma forte relação com o poder. Infelizmente, ainda ninguém teve a coragem de assumir a responsabilidade daquele ato que foi um ato reprovado por todos aqueles que sabiam da forma imparcial como fazia os meus comentários. Além disso, este argumento da pertença a um partido político não faz sentido. Aqui em Portugal, os responsáveis políticos e económicos fazem análise política, comentários, escrevem artigos, são grandes atores mediáticos e isso faz parte da vida democrática. Infelizmente, em Angola, a ideia que prevalece não é essa. Os atores que têm de estar no palco são os atores do regime. Esses têm todo o espaço. Se houver um qualquer ato que não valha coisa alguma são capazes de perder na televisão vinte minutos com imagens de um ator terciário do regime e temos de engolir a figura durante esse tempo e no final perguntarmo-nos o que estivemos a ver, para concluir que não era nada. Infelizmente, os responsáveis da rádio sujeitaram-se àquele ditame e eu democraticamente percebi que tinha mesmo de ser assim. Aliás, eu já estava à espera tal como disse na altura. Estava apenas a fazer o jogo, a ver quando é que ia acontecer e com que descaramentos iriam apresentar os seus argumentos.
A Igreja Católica está ao lado do regime?
Não está muito longe. Notam-se diversas tendências. A igreja também é constituída por homens. Acredito que no seio da própria igreja há quem concorde com esses atos e quem esteja em desacordo.
"Fazer oposição tem custos elevadíssimos"
Há algum tempo afirmou que a democracia tem os chamados custos da negociação, mas que as ditaduras ainda têm custos mais elevados porque "até um louco pode governar". Em Angola evitam-se os custos da democracia?
As pessoas só podem perceber os custos da democracia quando querem, efetivamente, fazer democracia. Em democracia há momentos em que se fazem algumas cedências em troca de alguns ganhos eventuais. Não me parece que seja essa a posição que, de uma forma geral, prevalece em Angola. O partido do Governo tem a propensão de ganhar tudo e deixar apenas um espaço imaginário para as outras forças. É por isso, quando se trata de Angola, não faz sentido falar em democracia mas em projeto democrático.
Quando é que esse projeto estará concluído?
Vai ser necessário muito trabalho e muita coragem de todos os atores, não só aqueles que estão no poder, mas também aqueles que estão na oposição. Se todos fizermos os nosso trabalho poderemos reduzir o espaço, mas se não nos empenharmos devidamente claro que esse espaço será muito dilatado e com muitos sacrifícios também.
Até onde é que podem ir esses sacrifícios?
Há sacrifícios que, por vezes, até custam a saúde e a vida. Temos casos em que as pessoas perderam a vida por causa da sua vontade de viver em liberdade. Infelizmente ainda acontece isto. Outros perdem a saúde, são violentados, são agredidos. Enquanto não houver uma vitória clara da democracia teremos sempre este tipo de custos.
O senhor que foi preso pelos regimes totalitários de Portugal, antes do 25 de Abril, e de Angola, depois da Independência, até onde é que está disponível a ir para ver esse projeto democrático concluído?
Enquanto tiver força vou dar o meu contributo. Não faço isto para ter benefícios pessoais, mas para cumprir os meus desígnios, que não passaram apenas pela Independência de Angola, caso contrário já tinha parado há muito tempo. O meu desígnio manter-se-á até que eu tenha a perceção de uma sociedade mais aberta, mais livre, mais democrática, mas também tenho a certeza absoluta de que tudo isso não será feito numa única geração e com um conjunto restrito de pessoas.
Disse recentemente que os angolanos "cresceram numa cultura em que o silêncio é a alma do negócio" e que é "melhor silenciar para não ser punido". Quem fala em Angola leva?
Se disser aquilo que não interessa tem grande probabilidade de levar e leva de várias maneiras. Não é apenas a agressão física. Os angolanos [que falam] são impedidos de ter acesso a bens e benefícios que de outra forma teriam. Isso é inquestionável. Não vale a pena pensarmos que fazer oposição não tem custos. Tem custos elevadíssimos. Por isso mesmo, muitas pessoas passam uma imagem de militância no regime para poder ficar salvaguardado de eventuais danos, pelo facto de não concordar com o Governo.
Angola está a precisar de um 25 de Abril?
O 25 de Abril foi um golpe militar que desencadeou numa revolução. No contexto português justificava-se, até porque os militares que protagonizaram esse levantamento tinham um programa democrático para Portugal. Felizmente, esse programa democrático realizou-se. Nada garante que um levantamento militar em Angola aponte para o desenvolvimento democrático. Além disso, a situação de pobreza e de miséria das populações é de tal maneira grande que uma convulsão de caráter militar pode conduzir-nos a uma perda de controlo sobre a sociedade e degenerar em morticínios. Não nos podemos esquecer que vivemos estes anos todos em guerra. Há muita gente militarizada e traumas que podem desencadear vinganças. Os golpes militares não são uma solução porque só podem redundar em benefícios quando os atores têm a perceção dos resultados dos seus atos e, sobretudo, quando têm projetos para acelerar as transformações sociais. Um golpe militar para substituir o atual ditador por um outro ditador, penso que é perigoso. Este tipo de golpes desgasta sempre as elites. As grandes vítimas dos golpes militares, por vezes, nem é o povo, são as elites, porque são elas os alvos mais fáceis.
"Associação mafiosa"
Em Portugal há um sentimento de desconfiança em relação à origem do dinheiro angolano. É legítimo esse sentimento de desconfiança em relação ao investimento angolano em Portugal?
Penso que sim. Há toda a legitimidade em pensar-se que esse dinheiro não foi ganho com o suor do rosto. Que nós saibamos, essas pessoas não eram ricas e muito menos empreendedoras. São fortunas que foram feitas a partir do tráfico de influências ou da própria subtração de recursos públicos. Quando a origem do dinheiro é essa é evidente que quem observa tem toda a legitimidade para desconfiar. Não me parece que a história do nosso país tenha sido capaz de gerar tamanhas riquezas pessoais e familiares como aquelas que hoje se veem. De um modo geral são fortunas resultantes do tráfico de influências e da subtração de recursos públicos. Não tenhamos dúvidas sobre isso. É evidente que poderá hoje haver um ou outro indivíduo que tem recursos fruto de algum empreendedorismo, mas os grandes impérios económico-financeiros de Angola foram construídos à custa do poder de Estado.
Segundo a Agência Nacional de Investimento Privado de Angola em 2013, Portugal investiu mais de 78,7 milhões de dólares em Angola, metade dos quais na indústria transformadora (47%), com especial destaque para o investimento da Sumol+Compal na província de Kwuanza Norte (29 milhões de dólares). O tipo de investimento português em Angola é aquele que mais interessa aos angolanos?
O investidor, quando investe, em princípio tem o cuidado de perceber se o seu investimento será rentabilizado. Se aquela é a melhor forma de aplicar a sua poupança. Esta é a função do investidor, que não tem de pensar no bem-estar do consumidor. Quem tem a responsabilidade de pensar no bem-estar do recetor do investimento é o Governo angolano. Ele é que deve separar o trigo do joio. Ver se um dado investimento é, ou não, prioritário, se está bem localizado.
Em 2013, a China foi o quarto maior investidor estrangeiro em Angola, com 76,4 milhões de dólares. O que é que, em seu entender, procuram os chineses em Angola?
Os chineses procuram o mesmo que qualquer investidor: rentabilizar os seus investimentos. Uma coisa é o investimento chinês, outra é o financiamento chinês para investimentos em Angola. Por vezes, confunde-se o financiamento com o investimento. Penso que quando o Estado angolano vai à China buscar financiamentos é para a realização de investimentos em Angola que podem ser feitos ou por empresas chinesas ou por empresas locais ou até por parcerias entre empresários locais e empresários chineses. As pessoas de uma forma geral confundem o financiamento com o investimento. O valor que referiu, até pode ser que seja mesmo investimento chinês. Hoje olhamos para as empresas chinesas em Angola e pensamos que são empresas públicas chinesas que vieram realizar obras em Angola a pedido das entidades angolanas. Mas já me apercebi que muitos daqueles investimentos são mesmo privados chineses. Não me repugna nada que o investimento seja chinês, americano ou britânico. O investimento que nos interessa é o bom investimento. Aquele que é gerador de rendimento e de riqueza para Angola mas não aquele investimento que, aparentemente, vai gerar produtos e serviços para Angola mas que na realidade se vai completar como uma forma de associação mafiosa com interesses locais. Parece-me que em alguns casos haverá esse tipo de associação mafiosa entre interesses chineses ou outros e interesses angolanos. De tal maneira que, os chamados "investidores armados" dão cobertura aos interesses estrangeiros protegendo-os graças ao poder de Estado que também possuem. A maior partes destes ditos empresários angolanos são também agentes públicos, são agentes políticos, são responsáveis do Estado.
Em outubro do ano passado, na sequência da crise diplomática entre Lisboa e Luanda o "Jornal de Angola" publicou uma série de editoriais. Num deles, a 16 de outubro, afirma-se que Portugal é um "país em crise profunda e, por isso, muito sensível às relações com o mundo exterior, de onde vêm as ajudas". Como é que a crise portuguesa é vista de Luanda?
Esse tipo de leitura é de colonizado frustrado, vingativo que só pensa: Agora chegou a nossa vez. Não é disso que necessitamos. Temos de olha para a antiga potência colonial apenas como antiga potência colonial. E como um parceiro atual. Mais nada. É evidente que a relação do passado deixou os seus vestígios, a história não se apaga de um momento para o outro, mas certo tipo de editoriais só refletem a frustração que está na cabeça de algumas pessoas que pensam que são independentes mas que não são porque mantêm o cordão umbilical ao passado colonial. Isso é um reflexo do colonialismo mental que existe na cabeça de quem escreve esse tipo de editoriais. Hoje, do meu ponto de vista, Portugal é tão parceiro como os Estados Unidos, o Brasil, a Inglaterra ou a França. As pessoas estão-se a esquecer que a Inglaterra e a França também foram potências coloniais de outros colonizados. Mas relacionamo-nos com eles como se nunca tivesse havido colonialismo e quando se trata da relação com Portugal vamos ao fundo do baú buscar o velho chavão colonial.