Fonte: Makaangola/Rafael Marques de Morais18 de Fevereiro de 2016
O painel: Princeton Lyman, Todd Haskell, Luvualu de Carvalho e Rafael Marques.
Na passada sexta-feira, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou uma resolução que abre a caminho para que Angola seja elevada, no ano de 2020, de País Menos Avançado (PMA) a país de renda média.
Tal resolução é motivo de celebração para o governo angolano, pois opera como instrumento de validação da sua administração. De acordo com estimativas económicas angolanas, entre 2003 e 2013 os rendimentos nacionais do petróleo ultrapassaram os 450 biliões de dólares, e durante uma década o país foi um dos dez cujas economias mais depressa cresceram, a nível mundial.
No entanto, o timing da resolução da ONU não deixa de ser irónico para o cidadão angolano comum. Ela é tomada numa altura em que a falência do boom económico que vinha sendo alimentado pelo mercado petrolífero se tornou demasiado evidente nas prateleiras dos supermercados, e em que a pobreza tem vindo a aumentar.
Em algumas regiões do país, a escassez de alimentos está a tornar-se severa. Na capital, Luanda, os retalhistas têm vindo a impor progressivamente o racionamento de alguns produtos. A taxa de câmbio informal do dólar, que marca o ritmo da economia real, está agora cinco vezes mais elevada do que há um ano; a taxa de câmbio oficial subiu 60%.
Outros sinais de alarme para o público em geral são a redução sem precedentes do número de funcionários públicos e o colapso de várias empresas privadas. Igualmente, severas restrições a levantamentos nos bancos, de modo a fazer face à escassez de dinheiro, e a queda do mercado imobiliário constituem indícios que o público em geral tem interpretado como a evidência de que o país se encontra a braços com problemas sérios.
Que uso deu o governo a todo o dinheiro proveniente das receitas do petróleo? Esta é uma questão que permanece sem resposta. Um cálculo rápido dos custos dos projectos de reconstrução nacional que se conhecem não totaliza sequer 10% dos US $450 biliões.
No entanto, os angolanos enfrentam agora algo de mais premente. A economia estava dependente de uma variável – o preço do petróleo. Ora, o seu colapso desencadeou uma crise nas finanças públicas, que por sua vez levou a que o governo perdesse o rumo no que diz respeito às políticas económicas.
Porquê? Confrontemo-nos com a realidade. As contas do Estado para 2013 revelaram que o tesouro recolheu dividendos equivalentes a US $954 mil por todas as participações directas do Estado num total de 37 empresas públicas e privadas, sem contar com a Sonangol, a Companhia Petrolífera Nacional. Conforme se refere nas contas do Estado, tais lucros resultaram apenas da sua participação em três cervejeiras. Bancos de investimento, imobiliário, transportes e outras empresas não geraram qualquer retorno.
Quanto aos investimentos do governo em 11 multinacionais estrangeiras, onde se incluem a Chevron, a British Petroleum, a Abbot Laboratories e a Dow Chemical Company, o estado reporta US $110 mil de lucro.
Tais exemplos ilustram bem a forma como o governo tem estado a jogar com a sorte. Não consegue sequer demonstrar que fez bons investimentos com o dinheiro do petróleo. Mesmo o Fundo Soberano de Angola, que o governo criou enquanto rede de suporte para momentos como o actual, tornou-se também ele não mais do que um negócio da família presidencial. José Filomeno Dos Santos, o inexperiente filho do presidente, de 36 anos, é quem o gere, como se fosse o seu próprio parque de diversões.
O que se tornou norma quanto à transparência das acções governativas foi o nepotismo do presidente, que atribui contratos e cargos públicos fundamentais a membros da sua família. Disto são exemplos mais recentes a atribuição à sua primogénita, a bilionária Isabel dos Santos, dos seguintes projectos: o Plano Director-Geral Metropolitano de Luanda, avaliado em US $15 biliões; a reestruturação da Companhia Nacional de Combustíveis de Angola, Sonangol; a Comissão para a Reestruturação do Sector Petrolífero; e, finalmente, um contrato no valor de US $615,2 milhões referente à Marginal Sul de Luanda. É a isto que eu chamo transparência no saque.
E é tudo o que devemos esperar, por parte do actual regime, no que diz respeito à transparência. Em 2013, o Tribunal Constitucional regulamentou que o Parlamento não dispõe de poderes legais para supervisionar o governo. “Ter poderes para interpelar o executivo equivaleria a ter poderes para o fazer com o presidente, que é o chefe do governo, e tal é inaceitável”, explicou a decisão. Como podemos falar de transparência sem pesos e contrapesos, controlos e equilíbrios institucionais?
Direitos Humanos
Na década de 1980, durante o período marxista-leninista, corria uma piada dizendo que, se o governo parasse de providenciar determinado número diário de telenovelas brasileiras à população, então haveria um golpe de Estado. A combinação de repressão e políticas corruptas funcionou bem para o governo e para o entretenimento da população urbana e peri-urbana.
Presentemente, a corrupção das cúpulas que impiedosamente continuam a saquear o país tornou-se um perigo para elas próprias. A população já não se deixa entreter, como na época das telenovelas brasileiras. Assim sendo, o governo tem vindo a tomar medidas preventivas para salvaguardar a sua impunidade. A sua estratégia, gasta de tão usada, passa por fabricar teorias da conspiração sobre actos de rebelião e projectos de golpes de Estado.
Esta táctica serve três objetivos: o primeiro, de cariz propagandístico, transforma numa vantagem o facto de o presidente estar no poder há demasiado tempo (36 anos), mostrando-o como uma vítima constante dos conspiradores. Em segundo lugar, funciona como justificação para o seu aparato de segurança, indispensável para pôr termo à dissensão. Por último, serve para neutralizar potenciais líderes que possam catalisar sentimentos anti-regime.
Façamos um apontamento cronológico sobre os três casos que prenderam as atenções nacionais no último ano, no que diz respeito a questões de direitos humanos.
Em primeiro lugar, no enclave petrolífero de Cabinda, há cerca de um ano – em Março de 2015 – as autoridades prenderam o activista Marcos Mavungo quando este saía da missa. Mavungo tentara organizar protestos contra a má administração e os abusos de direitos humanos na região; protestos esses que haviam já sido proibidos após severas ameaças. O activista cumpre neste momento uma pena de seis anos de prisão na penitenciária local, condenado por planear uma rebelião de um homem só contra o regime democraticamente eleito do presidente Dos Santos.
Mais de metade da produção de petróleo angolana vem de Cabinda. É também irónico que esta tenha sido a primeira região em que o pânico levou a população a acorrer às lojas para se abastecer preventivamente, numa altura em que se agudizaram as falhas nos stocks de alimentos e de outros bens de consumo básico.
A situação paradoxal de Cabinda é também indício da responsabilidade social das multinacionais petrolíferas, que uniram forças com o regime angolano para maximizar a extracção de recursos e encobrir a negligência com que este tem tratado aquela que é a sua principal premissa – servir o seu país e o seu povo.
Em segundo lugar, conta-se o massacre dos seguidores da seita Luz do Mundo, a 16 de Abril de 2015, levado a cabo pela polícia e demais forças militares. O governo alegou que membros da seita teriam assassinado nove agentes da polícia que haviam tentado deter o seu líder no Monte Sumi, na província central do Huambo.
De acordo com o vice-comandante-geral da Polícia Nacional, comissário Paulo de Almeida, a polícia matou, como retaliação, 13 atiradores “pertencentes à guarda de Kalupeteka, com o objectivo de neutralizar e desestabilizar a operação”. O julgamento de Kalupeteka ainda está a decorrer, e até à data o governo ainda não conseguiu fazer prova de que os referidos mortos eram atiradores e estivessem de algum modo implicados no assassinato de polícias. De resto, até os oito netos de Kalupeteka, com idades compreendidas entre um e sete anos, tinham sido detidos, juntamente com os seus pais – o que incluiu os filhos João e Jolino Tito e as respectivas esposas – a 10 de Maio de 2015. “[A polícia e forças de segurança] maltrataram-nos e acusaram-nos insistentemente de sermos membros do Boko Haram e da UNITA.” Nenhum tinha sequer estado no local, e o seu crime era somente o parentesco com Kalupeteka. Também o seu irmão e alguns primos foram detidos e classificados como “terroristas”.
Há dias, tive uma conversa com João Kalupeteka, o filho mais velho do líder da seita. Descreveu-me como depois do massacre a polícia entrou no Monte Sumi e prendeu e puniu todas as pessoas que usavam botas de borracha e “casaquetes” (indumentária comum entre os camponeses locais), afirmando que pertenciam à seita.
“Recentemente, havia já demasiados agentes de segurança infiltrados na igreja. Espalhavam falsos rumores e profecias sobre o fim do mundo como parte de uma campanha contra o meu pai e que visava a destruição da seita, que começava a estar fora do controlo governamental e a ser muito influente na zona sul do país”, contou-me João Kalupeteka.
Por último, temos o Caso dos 15 activistas que foram detidos em Junho de 2015 por discutirem livros e manuais sobre resistência pacífica na Livraria Kiazele, em Luanda.
Não constituiu qualquer surpresa que o honorável embaixador Luvualu, aqui presente, tenha declarado publicamente que os 15 activistas estavam coligados com a NATO no sentido de provocar um bombardeamento de Angola por parte deste organismo internacional ou de algum dos seus estados-membros, com vista à destituição de José Eduardo dos Santos. Tal pronunciamento do embaixador Luvualu é também uma excelente ilustração do tipo de lógica que transforma o agressor na suposta vítima. Segundo a propaganda oficial, através de protestos por si instigados, os jovens levariam a polícia a matar entre 20 a 25 manifestantes, sobretudo mulheres e crianças, o que instigaria, por sua vez, o ataque internacional.
Quanto à forma como os jovens iriam derrubar o presidente, as acusações formais foram bastante mais modestas: marchariam sobre o palácio presidencial, onde queimariam pneus para obrigar a rendição do seu ocupante.
Até à data, são impressionantes as provas exibidas em tribunal no julgamento que decorre desde há três meses: um vídeo editado onde se vêem dois acusados que discutem como reagir, de forma não violenta, a uma eventual agressão com armas de fogo por parte da polícia; um quadro branco com as iniciais do presidente – JES – como prova de um plano para o assassinar. Neste aspecto, a duplicidade do discurso das autoridades é muito evidente. As conspirações loucas são simples propaganda; as acusações ridículas visam permitir aos tribunais justificar a detenção dos activistas. A coerência não é, pois, um requisito.
Conclusão
À luz desta breve descrição de factos, apresentam-se três possíveis cenários de curto prazo em Angola: no primeiro, o preço do petróleo poderá disparar e o governo manter-se no poder, através dos mesmos esquemas de clientelismo, repressão e sorte.
Num segundo cenário, o debate sobre a necessidade de uma transição pacífica para uma era pós-Dos Santos e de construção de instituições democráticas ganhará momentum e as autoridades encontrarão uma solução digna através do diálogo com outros sectores da sociedade.
Numa terceira hipótese, permitimos que a actual situação se esgote até encaixarmos plenamente no título do romance de Chinua Achebe: Things Fall Apart (que poderia traduzir-se, por exemplo, como “O Desmoronamento”). As consequências deste último cenário são imprevisíveis, mas certamente trágicas.
De acordo com o que aprendi em Washington DC, deve sempre fazer-se uma recomendação ao governo americano. Uma vez que se verifica a franca escassez de envolvimento internacional na questão dos direitos humanos em Angola, aqui vos deixo a minha recomendação: apoiem um diálogo nacional em Angola; um diálogo que tome em consideração a crise actual. A presença do embaixador Haskell aqui, hoje, constitui um bom exemplo de um gesto simples mas eficaz, que poderia ser tomado em Angola para iniciar tais conversações.
Tanto o embaixador Luvualu como eu aguardávamos o dia em que pudéssemos discutir face a face. Posso agora desafiar o embaixador Luvualu para que discutamos os mesmos assuntos em Luanda, num fórum patrocinado pelo governo de Angola.
* Comunicação apresentada no debate sobre a "Transparência, Direitos Humanos e Sociedade Civil em Angola", a 18 de Fevereiro de 2016, com o subsecretário de Estado adjunto para os Assuntos Africanos dos EUA, Todd Haskell, o embaixador itinerante António Luvualu de Carvalho e Rafael Marques de Morais. Organizado pelo National Endowment for Democracy, em Washington, DC, o encontro foi moderado pelo embaixador Princeton Lyman.