PRESIDENTE DIZ ADEUS AO IMPÉRIO
Quando quiseram desenhar e legitimar o estatuto de plenos poderes do presidente da República de Angola, os constituintes de 2010 encontraram maneira de introduzir numa Constituição aparentemente democrática a figura de um Napoleãozinho. Fingindo copiar o presidencialismo americano com uns toques do constitucionalismo sul-africano, o povo angolano viu-se presenteado com um presidente que acumula tantos poderes quanto o imperador francês Napoleão Bonaparte, e que não é alvo de qualquer espécie de controlo.
Agora que José Eduardo dos Santos anunciou que não se recanditará e escolheu João Lourenço para cabeça de lista do MPLA nas próximas eleições gerais, é altura de voltar a reflectir sobre os poderes presidenciais. E estamos certos de que José Eduardo dos Santos fará o mesmo, pois ele sabe melhor do que ninguém que deixar eleger João Lourenço com os mesmos poderes napoleónicos que JES é um convite à “morte”. Se João Lourenço se tornar o presidente plenipotenciário da República Angolana, JES e a sua família ficarão numa posição muito vulnerável, tão indefesos quanto os seus inimigos de hoje.
Em 2010, a Constituição angolana foi manipulada para garantir que José Eduardo dos Santos tivesse poderes absolutos (dir-se-ia, imperiais) e ainda para garantir que fosse ele próprio a determinar o resultado das eleições. É tempo, então, de fazermos o exercício que se impõe a José Eduardo dos Santos e sua família, mas também — e sobretudo — a todos nós, cidadãos: vejamos quais são os poderes que de facto a Constituição confere ao presidente da República de Angola.
Poderes presidenciais: a síntese de Jorge Miranda
Nos termos da Constituição Angolana, como bem explica o constitucionalista português Jorge Miranda (“pai” da Constituição Portuguesa), “o Presidente é Chefe de Estado, Chefe do Executivo e Comandante-Chefe das Forças Armadas (art. 108º, nº 1). Promove e assegura a unidade nacional, a independência e a integridade territorial do País, representa a Nação no plano interno internacional, respeita e defende a Constituição, assegura o cumprimento das leis e dos acordos e tratados internacionais, promove e garante o regular funcionamento dos órgãos do Estado (art. 108º, nos 4 e 5)”.
Como Chefe do Estado, entre outras, são competências do Presidente (art. 119º):
– Promover junto do Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva e sucessiva da constitucionalidade de actos normativos e tratados internacionais, bem como de omissões inconstitucionais;
– Nomear e exonerar os Ministros de Estado, os Ministros, os Secretários de Estado e os Vice-Ministros;
– Nomear o Presidente e três juízes do Tribunal Constitucional [alínea f), conjugada com o art. 180º, nº 3];
– Nomear o Presidente, o Vice-presidente e os demais juízes do Tribunal Supremo [alínea g), mas nos termos do art. 181º];
– Nomear o Presidente, o Vice-presidente e os demais juízes do Tribunal de Contas;
– Nomear os juízes do Supremo Tribunal Militar;
– Nomear e exonerar o Procurador-Geral e os Vice-Procurador-Geral da República;
– Nomear e exonerar o Governador e os Vice-Governadores do Banco Nacional de Angola;
– Nomear e exonerar os Governadores e os Vice-Governadores Provinciais;
– Convocar referendos, mas sob proposta da Assembleia Nacional [arts. 161º, alínea j, e 168º];
– Declarar estado de guerra e fazer a paz, ouvida a Assembleia Nacional;
– Declarar o estado de sítio e o estado de emergência, ouvida a Assembleia Nacional;
– Promulgar e mandar publicar a Constituição, as leis de revisão constitucional e as leis da Assembleia Nacional;
– Presidir ao Conselho da República;
– Nomear os membros do Conselho Superior da Magistratura (mas nos termos do art. 184º);
– Designar membros do Conselho da República.
Enquanto Chefe do Executivo, o Presidente da República tem, entre outras competências:
Enquanto Chefe do Executivo, o Presidente da República tem, entre outras competências:
– Definir a orientação política do País;
– Dirigir a política nacional;
– Submeter à Assembleia Nacional a proposta de Orçamento Geral do Estado;
– Dirigir os serviços e a actividade da Administração directa do Estado, civil e militar, superintender na Administração indirecta e exercer a tutela sobre a Administração autónoma;
– Definir a orgânica e estabelecer a composição do Poder Executivo;
– Solicitar à Assembleia Nacional autorizações legislativas;
– Exercer iniciativa legislativa, mediante propostas de lei apresentadas à Assembleia Nacional;
– Convocar e presidir às reuniões do Conselho de Ministros e fixar a sua agenda de trabalhos;
– Dirigir e orientar a acção do Vice-Presidente, dos Ministros de Estado e Ministros e dos Governadores de província;
– Elaborar regulamentos necessários à boa execução das leis.
Como Comandante- Chefe das Forças Armadas, são de realçar os seguintes poderes:
– Assumir a direcção superior das Forças Armadas em caso de guerra;
– Nomear e exonerar o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e o Chefe do Estado-Maior General Adjunto das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
– Nomear e exonerar os demais cargos de comando e chefia das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
– Promover e graduar, bem como despromover e desgraduar os oficiais generais das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
– Nomear e exonerar o Comandante Geral da Polícia Nacional e os 2º Comandantes da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
– Nomear e exonerar os demais cargos de comando e chefia da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
– Promover e graduar, bem como despromover e desgraduar os oficiais comissários da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
– Nomear e exonerar os titulares, adjuntos e chefes de direcção dos órgãos de inteligência e de segurança de Estado, ouvido o Conselho de Segurança Nacional.
E no domínio da segurança nacional:
– Definir a política de segurança nacional e dirigir a sua execução;
– Determinar, orientar e decidir sobre a estratégia de actuação da segurança nacional;
– Aprovar o planeamento operacional do sistema de segurança nacional e decidir sobre a estratégia de emprego e de utilização das Forças Armadas, da Polícia Nacional e demais organismos de protecção interior, e dos órgãos de inteligência e de segurança de Estado.
Finalmente, e ainda seguindo Jorge Miranda, “além dos decretos legislativos publicados no uso de autorizações da Assembleia Nacional, o Presidente da República pode editar decretos legislativos presidenciais provisórios (semelhantes às “medidas provisórias” dos arts. 85º-XXVI e 62º da Constituição brasileira), sempre que, por razões de urgência e relevância, tal medida se mostrar necessária à defesa do interesse público, devendo submetê-los de imediato à Assembleia Nacional e podendo esta convertê-las em lei, com ou sem alterações, ou rejeitá-las (art. 126º)”.
Finalmente, e ainda seguindo Jorge Miranda, “além dos decretos legislativos publicados no uso de autorizações da Assembleia Nacional, o Presidente da República pode editar decretos legislativos presidenciais provisórios (semelhantes às “medidas provisórias” dos arts. 85º-XXVI e 62º da Constituição brasileira), sempre que, por razões de urgência e relevância, tal medida se mostrar necessária à defesa do interesse público, devendo submetê-los de imediato à Assembleia Nacional e podendo esta convertê-las em lei, com ou sem alterações, ou rejeitá-las (art. 126º)”.
O excesso de poderes do Presidente
Serve esta recapitulação exaustiva para que todos tenham noção da amplitude dos poderes do presidente. Se os interpretarmos atentamente, veremos que estes poderes conferem ao presidente autoridade para intervir em todas as três esferas que Montesquieu idealizou como necessariamente independentes: o poder executivo, o poder legislativo e o poder judicial. Além destes poderes, o presidente de Angola também detém em exclusivo o poder administrativo e o poder militar. Todos os poderes do Estado estão concentrados nas suas mãos, criando aquilo a que a doutrina chama Presidência Imperial. O presidente é um imperador. Ele faz o que quer, e o processo eleitoral assume a mera função de plebiscito.
As diferenças face ao presidente dos Estados Unidos da América
Haverá quem defenda que este modelo não pode ser assim tão mau, uma vez que o presidente dos Estados Unidos da América também tem amplos poderes.
É verdade: o presidente dos EUA é o chefe de Estado e chefe do Executivo e comandante supremo das Forças Armadas, nomeia juízes, nomeia ministros e tem algum poder legislativo.
Mas há uma diferença muito grande: O presidente dos EUA é controlado pelo Congresso, especialmente pelo Senado e, em menor grau, pelos tribunais federais.
O presidente dos EUA tem o poder de nomear ministros, mas estes têm de ser aprovados pelo Senado.
O presidente dos EUA faz alguma legislação, mas qualquer juiz federal pode, e pratica essa faculdade, considerá-la inconstitucional e não a aplicar.
Quer isto dizer que o presidente dos EUA tem de facto muitos poderes, mas estes são exercidos conjuntamente ou condicionados a aprovação por outros órgãos políticos. Sozinho, o presidente dos EUA pouco pode fazer. Pelo contrário, o presidente de Angola tem muitos poderes e exerce-os sozinho.
Portanto, a grande diferença de poderes entre o presidente dos EUA e o presidente de Angola são os chamados “checks and balances”. O presidente dos EUA é controlado, o presidente de Angola não.
Revisão constitucional
Espera-se que este estado de coisas mude se e quando houver sucessão presidencial. Nenhum homem ou mulher deve deter os poderes que José Eduardo dos Santos detém. Aliás, se não houver mudança, o próprio JES será o primeiro a sentir a força dos poderes do novo presidente e a ser eliminado. É assim a natureza humana, e a história comprova-o. Por muito fiel que João Lourenço aparente ser, há demasiado em jogo: demasiada riqueza, demasiado poder.
Aproveitando a ocasião, sugerem-se duas pequenas (mas de grande impacto) mudanças constitucionais que tornariam mais aceitável a figura normativa do presidente da República de Angola:
1) Submeter todas as nomeações de topo do PR (ministros, embaixadores, generais, governadores, juízes, presidentes das empresas públicas, etc.) a confirmação expressa pela Assembleia Nacional;
2) Reforçar a independência dos juízes e criar mecanismos legais efectivos para que as decisões legislativas e administrativas do presidente e dos outros poderes públicos possam ser efectivamente contestadas em tempo útil em tribunal.
Estamos em tempo de mudança. E isso deve servir para procurarmos caminhos de esperança e de progresso, não para estagnarmos no pântano de sempre.