domingo, 12 de janeiro de 2014

LUANDA: Narrativa de um rapto policial no Kikolo

Narrativa de um Rapto Policial no Kikolo

Fonte Maka angola
Divulgação: Planalto De Malanje Rio Capôpa
Por Rafael Marques de Morais 
 11 de Janeiro, 2014
A operação demorou pouco mais de cinco minutos e consistiu numa saraivada de mais de cem tiros. O pânico tomou conta daquela zona do bairro da Boa Esperança, na comuna do Kikolo, município de Cacuaco, Luanda.

“Parecia guerra”, conta Adelina José Baia, de 38 anos.

Tratava-se da operação de rapto do irmão de Adelina, Domingos dos Santos José, de 34 anos, por um grupo de elementos da Secção Municipal de Investigação Criminal de Cacuaco (SMIC). A operação ocorreu a 9 de Fevereiro de 2013, perto das 18 horas. Desde então, o jovem continua desaparecido e a sua família teme que tenha sido executado pelos agentes policiais.

Adelina José Baia e José Garcia Baia testemunharam a captura de Domingos dos Santos José, mesmo ao lado da casa dos seus pais, onde este estacionara uma viatura Toyota Land Cruiser.

Narrativa

De acordo com a narrativa familiar, os irmãos tinham saído do óbito de uma sobrinha, Mana, que falecera na madrugada do mesmo dia. No período da tarde, receberam um telefonema a informá-los da morte de outro sobrinho, Manucho. Domingos dos Santos José, também conhecido por Guda, decidiu ir a casa tomar banho e trocar de roupa antes de se dirigir, com a restante família, para o óbito seguinte.

Adelina José disse ao Maka Angola que o trabalho do seu irmão consistia em serviços de táxi entre Luanda, o Huambo e Bié. Naquela manhã, recebera o veículo novo, ainda com plásticos nos assentos, para entregá-lo a um cliente na província do Bié. Adiou a viagem devido à morte da sobrinha.

Adelina José Baia explica que o irmão ligou a ignição da sua viatura e logo se apercebeu da aproximação de homens armados, vestidos à civil. “Ele pensou que eram bandidos que queriam assaltá-lo. Tentou fazer marcha-atrás e um dos homens armados disparou contra o pneu e furou-o”, relata a testemunha que, nesse momento, identificou nove homens armados e assistiu ao início do tiroteio.

A viatura foi embater contra o muro de um quintal, tendo-o destruído parcialmente. Domingos dos Santos José saiu do carro e tentou fugir a pé. Foi logo capturado e imediatamente começou o espancamento.

José Garcia Baia acercou-se do irmão, já dominado pelos seus captores, e este tentou entregar-lhe a sua carteira de documentos. “Os agentes apontaram-me as armas e disseram-me para desaparecer dali”, afirma.

O irmão mais novo insistiu e viu os coletes de identificação com as inscrições da Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC) nos assentos da carrinha Toyota Hilux, de cabine dupla, uma das viaturas que transportaram os protagonistas da operação.

Várias testemunhas locais reconheceram a presença, no local, do então chefe da Secção Municipal de Investigação Criminal (SMIC) de Cacuaco, Tony Barros. O referido oficial exerce actualmente as mesmas funções no distrito urbano da Maianga, em Luanda.

“Notámos que o Tony Barros estava a comandar as operações a partir da sua viatura, um Suzuky Jimmy cor de vinho, com vidros fumados e matrícula [omitida]. Os jovens do bairro começaram a gritar o nome dele e identificaram também os investigadores Piedade e Dadão”, afirmou Adelina José Baia.

Um grupo de investigadores abandonou o local já no Toyota Land Cruiser que Domingos dos Santos José conduzia e, tal como o motorista, a viatura também desapareceu. A família desconhece o proprietário da viatura e este nunca tentou entrar em contacto com a família após o incidente.

O Baile do Encobrimento

Apesar da intensidade do tiroteio, as esquadras circunvizinhas, da Casa Branca e do Mapess, nunca enviaram efectivos ao local para averiguarem a situação.

No mesmo dia, a família dirigiu-se à 40.ª Esquadra, situada junto ao mercado do Kikolo, para inquirir acerca do paradeiro do Domingos dos Santos José. A referida unidade afirmou desconhecer a operação, segundo os familiares da vítima. Na esquadra da Rua do Combweça, na mesma comuna, o piquete encaminhou a família para a esquadra situada no bairro do Bom Pastor.

O oficial de dia, identificado apenas por Abel, tranquilizou a família, no dia seguinte, na unidade do Bom Pastor. “Ele disse-nos ‘não se preocupem, foram os nossos colegas que o prenderam. Ele está sob controlo da investigação. Voltem amanhã às 8h00’”, relata Adelina Baia.

Diante da insistência da mãe em saber informações sobre o paradeiro do filho, de acordo com o depoimento de Adelina Baia, o oficial apresentou a primeira justificação sobre o caso. “O oficial de dia informou que o meu irmão tem problemas pessoais com o chefe da investigação criminal [Tony Barros] e que é gatuno.”

“A minha mãe respondeu que se o meu irmão tinha problemas e se era gatuno, cabia à polícia explicar qual era o problema, o que ele tinha roubado e qual era o seu paradeiro. Ela disse aos polícias que os gatunos também tinham direitos e eles correram connosco”, afirmou Adelina Baia.

No dia seguinte, a 11 de Fevereiro, a família deslocou-se novamente à esquadra do Bom Pastor e foi encaminhada para o Comando Municipal da Polícia Nacional, em Cacuaco. “O piquete do comando informou-nos que [esta instituição] não tinha conhecimento da operação”, refere a irmã do desaparecido.

Frustrado, José Baia, pai de Domingos, explica que a sua família tem estado a contactar múltiplas entidades policiais e procuradores sem sucesso. “Já fomos à investigação criminal do município [comando], à Procuradoria-Geral da República junto da DNIC [Direcção Nacional de Investigação Criminal], já fomos à DPIC [Direcção Provincial de Investigação Criminal], à DNIC nacional, até ao Comando-Geral da Polícia Nacional”, desabafa.

José Baia revela ter recebido garantias pessoais por parte do representante do procurador-geral da República junto da SMIC, João António, sobre o paradeiro de Domingos dos Santos José. “Ele disse-me ‘o seu filho não está morto, vai aparecer depois de seis, oito ou dez meses’”.

“Eu quero o meu filho de volta, a polícia sabe onde ele está”, apela José Baia.  “Quem está com o meu filho é mesmo a polícia de investigação criminal.”

José Baia levanta-se do sofá, puxa a camisola para cima e mostra o seu corpo cicatrizado, tracejado por quatro operações. Durante anos foi guerrilheiro da FNLA, na luta pela libertação nacional, e logo após a independência ingressou nas extintas FAPLA. Esteve sempre em missões de combate, até ser apanhado numa emboscada. Pergunta-se a si mesmo: “Lutei para isto, para um país onde a polícia rapta cidadãos?”

“Se mataram o meu filho devem mostrar onde ele foi enterrado ou a casa mortuária onde o meteram. Eu só quero saber a verdade”, afirma o pai.

José Baia vai mais longe e recorda o discurso recente do chefe de Estado José Eduardo dos Santos. “O presidente disse que o seu governo não tem cultura de assassinatos. A acção de rapto e desaparecimento do meu filho não foi um acto da polícia? A polícia não é do governo?”

A 2 de Abril de 2013, a mãe de Domingos dos Santos José, Maria Bebiana (que assina como Bibiana Makanua), endereçou uma exposição ao inspector-geral da Polícia Nacional sobre o rapto do seu filho. Nunca obteve resposta formal.

No entanto, através de várias idas ao Comando-Geral da Polícia Nacional, Adelina Baia teve a oportunidade, em Setembro passado, de estar presente num encontro directo com o investigador Tony Barros.

“Houve uma acareação entre mim e o Tony Barros lá no comando-geral, no gabinete de um oficial da inspecção-geral, que se identificou apenas como Vaz”, disse Adelina Baia.

No encontro, “eu testemunhei ter visto pessoalmente o Tony Barros no local, a comandar a operação a partir do carro dele. A viatura tem uma pala atrás com as iniciais do nome dele, T.B. Ele negou e assunto ficou assim”, revela.

Desde Setembro passado, Maka Angola tem acompanhado os passos da família na sua tentativa de contactos junto do Comando-Geral da Polícia Nacional, onde o conselho dado foi que se escrevesse uma petição ao ministro do Interior.

No Comando Municipal da Polícia Nacional, em Cacuaco, ultimamente as entidades relevantes têm-se manifestado indisponíveis para receber a família, com a justificação de que se encontram “reunidos”. Em Dezembro, evocaram a quadra festiva.

Maka Angola enviou, com vários dias de antecedência, este texto (ainda com alguns parágrafos por concluir) ao gabinete de comunicação e imagem do Comando-Geral da Polícia Nacional, de modo a obter a versão oficial deste órgão. Tão-logo seja recebida, Maka Angola certamente a publicará.

Antecedentes

Há um antecedente conhecido entre o desaparecido e o investigador Tony Barros. Trata-se de um assunto relacionado com uma viatura Volkswagen Golf 4, pertencente ao primeiro.

A 31 de Março de 2010, a SMIC de Cacuaco apreendeu a referida viatura na sequência de um processo criminal que resultou na condenação de Domingos dos Santos José a um ano e nove meses de cadeia.

O jovem cumpriu pena por desvio de um atrelado de camião da empresa 5M, para a qual trabalhava como motorista.

Posto em liberdade a 5 de Janeiro de 2012, o ex-presidiário tentou recuperar a sua viatura, que não constava do processo em tribunal que o levou à condenação, segundo documentos obtidos por Maka Angola.

Aqui se estabeleceu a única relação de animosidade entre o então chefe da investigação criminal de Cacuaco, Tony Barros, e Domingos dos Santos José.

“O investigador não queria entregar o carro. O meu irmão obteve um documento do tribunal e outro da DNIC para receber a sua viatura, mas nada. Estavam assim há quase um ano”, explica Adelina Baia.

A 8 de Fevereiro, Domingos dos Santos José deslocou-se, mais uma vez, à SMIC de Cacuaco onde, segundo depoimento da família, conversou com Tony Barros.

De acordo com Adelina Baia, “finalmente, disseram-lhe [ao irmão] para ir levantar a viatura na segunda-feira [11 de Fevereiro de 2013]. Ele nunca mais voltou à investigação criminal porque foi raptado no sábado [9 de Fevereiro de 2013]”.

“Depois de o miúdo ter sido raptado, o procurador João António disse-me para levar o Volkswagen para casa, com ou sem documentos. Respondi negativamente, porque seria aceitar a sentença para matarem o meu filho. Disse que, quando o libertarem, ele próprio poderá ir buscar o seu carro”, desabafa o pai do desaparecido.

Vigilância, Vigilância

Durante o trabalho de recolha de informações no local do rapto, tanto o autor como o jornalista Alexandre Solombe mereceram acompanhamento indiscreto por parte de agentes que se faziam transportar em duas viaturas: um Hyundai I20, castanho metalizado, e um Toyota Prado, azul escuro, cujas matrículas foram devidamente anotadas por jovens locais.


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