As quatro torres da Escom, em Luanda
Há dias li, no Diário Económico, a firme reacção do arguido Ricardo Salgado, empenhado em defender a sua honra e dignidade, bem como a da sua família, por ter passado, aos olhos da opinião pública, de banqueiro a bandido. É o caso do colapso do Banco Espírito Santo, de que foi presidente.
Lembrei-me, inevitavelmente, da honra e da dignidade das famílias angolanas cujo sofrimento também tem sido agravado pelo conluio da família Espírito Santo com a cleptocracia de um outro Santo(s) que governa Angola, no saque do país.
Decidi reler uma secção da minha dissertação de mestrado em Estudos Africanos (Universidade de Oxford, 2009), sobre “A transparência do saque em Angola”. Esta secção, que analisava o investimento estrangeiro e o mercado do conluio, visava, como maior exemplo, o Banco Espírito Santo e a Escom, em Angola. Estruturei a transparência do saque como o modelo segundo o qual os dirigentes, de forma aberta e arrogante, transferem bens e fundos do Estado para si mesmos e/ou para seus familiares, praticando assim às escâncaras o enriquecimento ilícito. Esta transparência invertida refere-se também ao modelo de negócios em que contratos multimilionários do Estado são atribuídos a empresas detidas ou participadas por dirigentes e seus familiares, sem quaisquer receios legais ou políticos. “Os cães ladram, a caravana passa”: assim pensam e agem os dirigentes políticos angolanos e seus beneficiários.
Na minha dissertação, identifiquei nove áreas críticas que conformam a transparência do saque: privatização do Estado; transformação do MPLA em sociedade comercial; petróleos; diamantes; banca; segurança privada e privatização das lideranças militares; família presidencial e seu círculo restrito; legislação em vigor; e, finalmente, investimento estrangeiro e mercado do conluio.
Em tempos áureos, o Grupo Espírito Santo, através da Escom e do Banco Espírito Santo Angola (BESA), destacou-se neste país pela posição que ocupava e por exercer uma influência transversal em todas essas áreas críticas acima identificadas. Por esse motivo, detive-me um pouco mais a analisar de que forma, dentre os seus inúmeros negócios em Angola, o grupo se tinha apressado a criar três empresas no Zaire em parceria com o então governador provincial, general Pedro Sebastião. A Escom tinha, sem dúvida, a habilidade e o poder de comandar generais nos negócios da corrupção e do branqueamento de capitais. Ministros e outras figuras de proa aguardavam na fila pela sua vez. A família presidencial Dos Santos e os seus colaboradores mais próximos tinham ali um aliado reputado no mundo das finanças internacionais, por um lado, e uma excelente lavandaria, por outro.
Resumo da Dissertação
A competição, em Angola, não ocorre ao nível do mercado mas no seio das instituições do Estado, responsáveis pela alocação e transferência de recursos e contratos e detentoras do papel de reguladores. Outrossim, a sobreposição de funções dos membros do governo, parlamentares e magistrados, enquanto decisores, reguladores e principais empresários do país introduz apenas uma mudança conceptual, mas significativa, da época professa da economia centralizada do marxismo-leninismo: a economia permanece centralizada, ainda que já não sob controlo do Estado, mas antes nas mãos dos dirigentes.
O académico Ronen Shamir defende que o mercado não deve ser desprovido de valores éticos, como a honestidade e as virtudes morais. Shamir reitera a noção, arremetendo para Foucault, de que os negócios empresariais podem reclamar uma certa isenção moral, uma vez que há outros mecanismos sociais, particularmente o governo. Este assume a responsabilidade de gestão das populações e dos recursos na provisão do bem-estar e da segurança. Desse modo, um governo nacional deve assumir e representar os interesses colectivos da sociedade, actuando como “o agente sócio-moral na regulação do Mercado e na provisão directa de serviços.”
Todavia, a competição internacional pelas riquezas de Angola eclipsou essa dimensão moral. Há uma corrida desenfreada na busca directa de parcerias com os mais poderosos da classe dirigente.
As empresas estrangeiras, em particular as portuguesas, procuram de modo febril estabelecer a sua posição nos processos de tomada de decisão que afectam a distribuição de recursos e contratos, e respectiva gestão. Fazem-no de modo a não apenas maximizarem os seus lucros mas também para agirem livres de quaisquer responsabilidades morais, restrições políticas ou legais.
Um caso paradigmático de profunda infiltração nas estruturas do poder em Angola é o Grupo Espírito Santo. Através da sua subsidiária em Angola, a Escom, tem parcerias com o governador do Zaire, general Pedro Sebastião, para beneficiar do projecto bilionário de gás liquefeito natural (LNG-Angola). O general detém 52.5 por cento da quota em cada uma das empresas criadas em parceria com a Escom, nomeadamente a Soyo Investimentos, a Imozaire e a Turisoyo. Estas empresas foram criadas para intervir nos sectores da construção, do urbanismo, da assistência técnica e do imobiliário. No Zaire, a Escom mantém, há já muitos anos, um contrato de exclusividade com o governo provincial para a gestão, a manutenção e o abastecimento do sector de saúde. A Escom tem ainda uma participação na empresa pesqueira Starfish, juntamente com o ex-governador de Benguela, general Armando da Cruz Neto, entre outros influentes generais. A teia de interesses comerciais com a elite, por parte desse grupo,estende-se à aviação, à comunicação social e à banca. O grupo tem ainda uma parceria com o Grupo Gema para uma fábrica de cimento, a Palanca Cimentos, na província do Kwanza-Sul.
Durante a época marxista-leninista (1975-1989), o saque dos bens do Estado não podia ser legalizado. No entanto, hoje, sob a bandeira da liberalização da economia, as famílias reinantes dedicam-se a legitimar aquilo que pilham do Estado através de parcerias com investidores estrangeiros que gozam da protecção política e diplomática dos seus países.
Em Abril de 2009, o governo angolano aprovou um acordo com Portugal para a promoção e protecção mútua de investimentos, anunciado como a chave para a criação de um clima de confiança e para a melhoria das relações económicas entre os dois países.
As consequências dessa “liberalização” foram pressagiadas, em 1999, pelo próprio presidente José Eduardo dos Santos como um risco ora materializado: a concentração das riquezas do país nas mãos de algumas famílias, sobretudo a sua, em conluio com interesses económicos estrangeiros.
Desse modo, as formas de soberania, assim como as regulações políticas e económicas, foram alteradas muito para além da eliminação de “fronteiras entre o público e o privado, entre o económico e o político e entre o lícito e o ilícito”, conforme argumento da estudiosa francesa Beatrice Hibou.
O entusiasmo pelas oportunidades de negócio em Angola, através de parcerias com os detentores de poder, sem reservas sobre os conflito de interesses e as ilegalidades resultantes desses actos, tem consolidado o que Achille Mbembe chama de “privatização da soberania”.
Em conclusão apropriada, diria apenas: honra e dignidade para todos.
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