PORTO DE CAIO: A ILEGALIDADE DA CONCESSÃO
O gato preto
O actual ministro dos negócios estrangeiros inglês, Boris Johnson, é famoso pela sua excentricidade e pelas declarações bombásticas. Um destes dias disse que, quando um assunto incomoda os convivas de um jantar, o melhor é lançar um gato preto para cima da mesa, para toda a gente começar a falar do gato preto e se esquecer do assunto desagradável.
É o que se está a passar no caso do Porto de Caio. Habilmente, lançou-se o gato preto, sob a forma de cartas ameaçadoras de uma empresa inglesa, a Schillings, levantando acusações variadas sobre este portal e a sua equipa. A verdadeira intenção por trás da artimanha é tentar que os factos sejam esquecidos. Mas os factos estão lá, merecem atenção, e são graves.
Lemos toda a documentação disponível sobre o Porto de Caio: a lei da contratação pública, os decretos presidenciais, os contratos entre a Caioporto e a construtora chinesa e os comunicados do Fundo Soberano. Temos sérias dúvidas sobre a legalidade da situação.
Os contratos com a China e o papel da Caioporto
Comecemos pelos contratos assinados a 26 e 27 de Janeiro de 2016 entre a Caioporto SA, representada por Jean-Claude Morais, e a empresa chinesa China Road and Bridge Corporation (CRBD), representada pelo director-geral Yang Xuesong, a qual vai construir o Porto de Caio.
O objecto do contrato é o “Projecto do Novo Porto de Caio em Cabinda”, realizado de forma EPC/Turnkey contract basis. Traduzamos para português: EPC quer dizer Engineering, Procurement, Construction (Engenharia, Compra de Materiais e Construção) ficando a empresa chinesa responsável pelo design, execução e concretização da obra, além da sua supervisão. Veremos à frente o que isto significa.
O valor do contrato é de 831.9 milhões de dólares. O banco interveniente é o China Exim Bank.
O financiamento do projecto: Estado (empréstimo chinês + Fundo Soberano)
Este contrato tem que ser conjugado com o decreto presidencial n.º 238/16, de 21 de Dezembro. Com este decreto, o presidente da República alterou o modelo de financiamento do projecto, garantindo o financiamento directo pelo Estado através da inclusão do contrato de construção na linha de crédito da República Popular da China a que faz alusão o decreto presidencial n.º 138/16, de 17 de Junho.
Nesse decreto, o Estado assume expressa e directamente o pagamento de 85 por cento da obra, revogando assim automaticamente qualquer garantia que já tenha prestado.
No mesmo decreto determina-se que a Caioporto continua a financiar a concepção, o projecto, parte da construção e a operação e manutenção do novo Porto. Mas logo a seguir também se diz que o contrato de empreitada realizado entre a Caioporto e a CRBD fica aprovado. E este último contraria a anterior prescrição do decreto. Por fim, é aprovado o financiamento chinês.
Finalmente, e de acordo com as informações prestadas pelo Fundo Soberano de Angola, é confirmado que os 15 por cento remanescentes são pagos pelo Fundo.
Feitas as devidas leituras, o que temos?
Uma obra, o Novo Porto de Caio, cujo design, execução, concretização e supervisão estão a cargo de uma empresa chinesa, paga com um empréstimo da China ao Estado angolano (85 por cento) e com dinheiro do Fundo Soberano (15 por cento). Portanto, toda a obra contratada é paga na íntegra por Angola.
E aqui começam os equívocos. O decreto presidencial refere que a Caioporto continua a financiar a concepção, o projecto e parte da construção. Mas ao mesmo tempo aprova o contrato previamente celebrado entre a Caioporto e os chineses. Ora, nesse contrato, estabelece-se que a obra é feita nos termos EPC/Turnkey contract basis. Tecnicamente, é um tipo de contrato em que o construtor começa por conceber um projecto detalhado da obra, adquire os materiais e faz a obra. Turnkey quer dizer que o projecto é entregue completo e que a sua execução não é levada a cabo segundo as ordens do dono da obra, mas sim de acordo com a engenharia do contratante. Em resumo, o construtor faz tudo.
Portanto, do contrato de empreitada que lemos conclui-se que o design da obra, o projecto específico e a totalidade da construção e supervisão da mesma estão a cargo dos chineses da CRBD, apenas competindo à Caioporto… receber a obra completa… Ao Estado compete pagar.
Referia-se no comunicado do Fundo que “o investimento dos accionistas da Caioporto S.A. no complexo portuário ascende os USD 250 milhões”. Não é possível evitar a surpresa, uma vez que, a partir dos documentos consultados, percebe-se que o investimento é zero. Então, quando é o que o investidor Caioporto vai fazer o seu investimento? Ou onde já o fez? Não há respostas. É que não basta afirmar. Imaginemos qual seria o resultado de uma investigação séria do PGR a esses investimentos de 250 milhões. Onde estão os projectos ou as actividades já realizadas nesse valor? Dizer que é um investimento a ser feito no futuro é irrelevante: como dizia o boneco dos cartoons Charlie Brown, o futuro é um labirinto…
A história que os documentos nos contam é que houve um projecto de construção de um porto em 2012; que nada de relevante se fez até 2016; que no início de 2016 se “delegou” o projecto detalhado e a construção do Porto a uma empresa chinesa; que se esperava começar em 28 dias, mas não se começou, porque não se pagou nem sequer a entrada; que foi preciso em Dezembro de 2016 o Estado assumir directamente o pagamento da obra.
Então, coloca-se a pergunta: se o Estado angolano paga directamente aos chineses, se os chineses fazem tudo e entregam o projecto pronto, o que andam pelo meio a fazer a Caioporto e Jean-Claude Bastos de Morais? E Filomeno José dos Santos “Zenú”?
A ilegalidade da concessão inicial do Porto do Caio
A concessão do governo à Caioporto foi realizada através do decreto presidencial n.º 177/12, de 14 de Agosto. Neste decreto, o presidente da República atribuiu a concessão do financiamento, planeamento, construção e demais actividades conexas à empresa dirigida por Jean-Claude. Já vimos acima que, cinco anos volvidos, o Estado teve que assumir o financiamento e os chineses, a construção.
Contudo, existe uma questão que perturbará a génese desta concessão: a sua ilegalidade, por inexistência de qualquer procedimento contratual.
Em 2012, data da concessão presidencial da construção do Novo Porto de Caio à Caioporto, já estava em vigor a lei n.º 20/10, de 7 de Setembro, que regulava a contratação pública, designadamente as concessões de obras públicas — o contrato pelo qual o co-contratante, concessionário, se obriga, perante uma entidade pública contratante, concedente, à execução ou à concepção e execução de uma obra pública, mediante a contrapartida da exploração dessa obra, por um determinado período de tempo; e as concessões de serviços públicos – o contrato pelo qual o co-contratante, concessionário, se obriga, perante uma entidade pública contratante, concedente, a gerir, em nome próprio e sob sua responsabilidade e em respeito pelo interesse público, por um determinado período de tempo, uma actividade de serviço público, sendo remunerado ou directamente pela entidade pública contratante concedente ou através da totalidade ou parte das receitas geradas pela actividade concedida (conferir artigo 2.º, n.º 2, e artigo 3.º, alínea g) e h) da lei da contratação pública).
A definição legal de concessão de obras públicas e de concessão de serviços públicos que acabámos de transcrever inclui aquilo que foi concessionado pelo presidente à Caioporto, como se poderá compreender em leitura atenta do artigo 3.º do decreto presidencial n.º 177/12, de 14 de Agosto.
Note-se que o titular do poder executivo está expressamente submetido à lei da contratação pública (artigo 4.º, n.º 1). Verifica-se também que a concessão não se enquadra nas excepções previstas no artigo 5.º da mesma lei. Aliás, o decreto presidencial, estranhamente, nem sequer faz referência à lei da contratação pública, nem de resto a nenhuma outra.
Ora, para a realização dos contratos sujeitos ao regime da contratação pública, o presidente da República deveria ter adoptado um dos seguintes tipos de procedimentos (artigo 22.º da LCP):
a) concurso público;
b) concurso limitado por prévia qualificação;
c) concurso limitado sem apresentação de candidaturas;
d) procedimento de negociação.
a) concurso público;
b) concurso limitado por prévia qualificação;
c) concurso limitado sem apresentação de candidaturas;
d) procedimento de negociação.
O presidente da República poderia escolher o procedimento que entendesse, dentro do enquadramento legal, mas teria que escolher algum deles e fundamentar a sua decisão (artigo 32.º da LCP). Não temos conhecimento de qualquer procedimento e muito menos de qualquer fundamentação. Aliás, não se vislumbra em parte alguma o cumprimento das disposições imperativas da lei da contratação pública. E, por outro lado, não se vê em lado algum qualquer referência à exclusão da aplicação desta lei, que entretanto foi revogada e substituída pela lei n.º 9/16, de 16 de Junho. Nem de uma, nem da outra.
Assim sendo, e perante a informação pública disponível, o contrato de concessão à Caioporto do Projecto do Novo Porto de Caio é ilegal, por não terem sido cumpridos os procedimentos exigidos pela lei da contratação pública vigente à época, e por não haver qualquer fundamentação ou referência a essa omissão.
Competiria ao PGR requerer a imediata impugnação da concessão e a reposição da legalidade, apesar de já termos experiência do seu silêncio e imobilismo face à protecção do bem público.
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