Um teólogo que optará pelo suicídio assistido?
Foi a partir da sua fé católica que Hans Küng aderiu à defesa da morte assistida.
No começo de Outubro de 2013, o conhecido teólogo católico suíço Hans Küng (HK), de 85 anos, publicou o terceiro livro das suas Memórias, Erlebte Menschlichkeit (que se poderá traduzir como Humanidade experienciada). Nele, revela que sofre da doença de Parkinson e que, para além de padecer de outros problemas de saúde, pensa que em breve ficará cego.Perante esta degradação da vida – HK pergunta-se o que é um académico que já não pode ler e escrever -, expressa a possibilidade de optar pelo suicídio assistido se uma morte súbita não o poupar a uma última decisão. Saliente-se, no entanto, que já em 1995 HK e o seu colega e amigo da Universidade de Tübingen, Walter Jens, crítico literário (falecido este ano, demente), escreveram o que em inglês foi traduzido por Dying with Dignity. A Plea for Personal Responsability. No último parágrafo desse “apelo”, num Postscript em torno da encíclica Evangelium Vitae, HK concluía: “podemos expressar a esperança de que, se não morrermos de morte súbita, possamos deixar este mundo rodeados por verdadeiros amigos e com a ajuda de um médico compreensivo, em serenidade e confiança, em gratidão e tranquila expectativa”.
Foi a partir da sua fé católica que HK aderiu à defesa da morte assistida, rejeitando qualquer forma de “autonomismo individualista”. Para ele, a vida é um dom de Deus e uma responsabilidade humana: no gerar de novas vidas, durante a existência e também na morte. Assim, “de acordo com a vontade de Deus”, ao mesmo tempo que uma dádiva, “a vida é também uma tarefa humana, portanto tornada responsabilidade nossa (e não dos outros). Trata-se de uma autonomia baseada numa teonomia”.
Não foi por acaso que HK se colocou estas questões. Em 1954, ao mesmo tempo que se dirigia para a Cripta de S. Pedro em Roma para celebrar a sua primeira eucaristia, o irmão, de vinte e dois anos, tinha um problema de saúde, tendo-lhe sido detectado pouco depois um tumor cerebral de que viria a morrer. HK diz ter então vivenciado um processo de morte terrivelmente lento, em que “um membro após o outro, um órgão após o outro, deixava de funcionar”. Isto, claro, depois dos métodos clássicos de “combate” ao cancro. Após dias atrozes de agonia, o irmão morreu sufocado nos fluidos dos pulmões. HK confessa que, “desde então, tenho-me perguntado se esta é a morte que Deus dá, que Deus ordena. Será que os homens e as mulheres devem aceitar isto ‘submissamente’ [...] até ao fim, como algo ‘dado por Deus’, ‘divinamente querido’ ou mesmo algo que ‘agrada a Deus’?”. Para HK, Deus é deste modo visto sobretudo como o “proprietário” dos seres humanos, dificilmente identificável com “o pai dos pobres, dos que sofrem, dos que estão perdidos”. Por isso, depois de uma longa reflexão, assumiu que “como cristão e teólogo estou convencido de que o Deus todo misericordioso, que deu aos homens e às mulheres liberdade e responsabilidade relativamente às suas vidas, também deu às pessoas que estão para morrer a responsabilidade de tomarem uma decisão consciente sobre o modo e o tempo das suas mortes”. Óbvio adepto dos cuidados paliativos, sabe que eles por vezes não eliminam toda a dor ou sofrimento, ou só o fazem à custa de uma sedação que elimina a hipótese de lucidez, tão apreciada por tantas pessoas. Por isso, Jens escreve que tanto ele como HK viveriam mais tranquilos se soubessem que poderiam dispor de um Max Schur para os acompanhar no final, ou seja, o médico pessoal de Freud que lhe proporcionou a eutanásia desejada. Escreve HK em 1995: “Tal morrer para dentro de Deus [dying into God], com um sentido de gratidão embaraçada, parece-me ser o que podemos esperar em confiança: uma verdadeira morte dignificada”. Claro que HK não exclui que outras mortes sejam também vividas dignamente, mas acredita que o seu cristianismo não lhe impede a morte assistida. Se esta vier a ser a sua opção, estou convencida de que acreditará de facto estar desse modo a mergulhar em Deus, podendo-se assim, como diz neste livro de Memórias, celebrar-se em seguida uma missa de acção de graças.
Docente aposentada da Universidade do Minho (laura.laura@mail.telepac.pt)
Foi a partir da sua fé católica que HK aderiu à defesa da morte assistida, rejeitando qualquer forma de “autonomismo individualista”. Para ele, a vida é um dom de Deus e uma responsabilidade humana: no gerar de novas vidas, durante a existência e também na morte. Assim, “de acordo com a vontade de Deus”, ao mesmo tempo que uma dádiva, “a vida é também uma tarefa humana, portanto tornada responsabilidade nossa (e não dos outros). Trata-se de uma autonomia baseada numa teonomia”.
Não foi por acaso que HK se colocou estas questões. Em 1954, ao mesmo tempo que se dirigia para a Cripta de S. Pedro em Roma para celebrar a sua primeira eucaristia, o irmão, de vinte e dois anos, tinha um problema de saúde, tendo-lhe sido detectado pouco depois um tumor cerebral de que viria a morrer. HK diz ter então vivenciado um processo de morte terrivelmente lento, em que “um membro após o outro, um órgão após o outro, deixava de funcionar”. Isto, claro, depois dos métodos clássicos de “combate” ao cancro. Após dias atrozes de agonia, o irmão morreu sufocado nos fluidos dos pulmões. HK confessa que, “desde então, tenho-me perguntado se esta é a morte que Deus dá, que Deus ordena. Será que os homens e as mulheres devem aceitar isto ‘submissamente’ [...] até ao fim, como algo ‘dado por Deus’, ‘divinamente querido’ ou mesmo algo que ‘agrada a Deus’?”. Para HK, Deus é deste modo visto sobretudo como o “proprietário” dos seres humanos, dificilmente identificável com “o pai dos pobres, dos que sofrem, dos que estão perdidos”. Por isso, depois de uma longa reflexão, assumiu que “como cristão e teólogo estou convencido de que o Deus todo misericordioso, que deu aos homens e às mulheres liberdade e responsabilidade relativamente às suas vidas, também deu às pessoas que estão para morrer a responsabilidade de tomarem uma decisão consciente sobre o modo e o tempo das suas mortes”. Óbvio adepto dos cuidados paliativos, sabe que eles por vezes não eliminam toda a dor ou sofrimento, ou só o fazem à custa de uma sedação que elimina a hipótese de lucidez, tão apreciada por tantas pessoas. Por isso, Jens escreve que tanto ele como HK viveriam mais tranquilos se soubessem que poderiam dispor de um Max Schur para os acompanhar no final, ou seja, o médico pessoal de Freud que lhe proporcionou a eutanásia desejada. Escreve HK em 1995: “Tal morrer para dentro de Deus [dying into God], com um sentido de gratidão embaraçada, parece-me ser o que podemos esperar em confiança: uma verdadeira morte dignificada”. Claro que HK não exclui que outras mortes sejam também vividas dignamente, mas acredita que o seu cristianismo não lhe impede a morte assistida. Se esta vier a ser a sua opção, estou convencida de que acreditará de facto estar desse modo a mergulhar em Deus, podendo-se assim, como diz neste livro de Memórias, celebrar-se em seguida uma missa de acção de graças.
Docente aposentada da Universidade do Minho (laura.laura@mail.telepac.pt)