O Ministério da Comunicação Social (MINCS) tem estado a financiar a Rádio Ecclesia, mas o governo não autorizou ainda o reconhecimento jurídico da emissora, que foi devolvida à Igreja Católica em 1997.
Em simultâneo, neste último ano, a Rádio Ecclesia despediu vários jornalistas, cancelou programas sem olhar a audiências, e avolumam-se as acusações de censura contra a actual direcção.
Patrocínio Estatal
O Maka Angola teve acesso a dois documentos comprovativos de uma ordem de saque do Ministério das Finanças, no valor de cinco milhões de kwanzas (US $50,000) a favor de uma conta da rádio, no Banco de Fomento de Angola. A verba é descrita como “apoio do MINCS àRádio Ecclesia”.
O director-geral da Rádio Ecclesia, padre Quintino Kandanji, declarou ao Maka Angola que tem recebido apenas apoios pontuais do Ministério da Comunicação Social. “Fiz um pedido [ao MINCS] de cinco milhões de kwanzas para a festa da rádio, no final do ano passado, foi isso.”
Sobre a regularidade do apoio e os valores totais envolvidos, o padre justifica-se com um sorriso: “Gostaríamos de ter esse apoio. A Miseror, [uma instituição] da Conferência Episcopal Alemã, é quem paga os salários dos nossos trabalhadores. Temos apoios pontuais do ministério apenas.”
Segundo o director da rádio, o relacionamento com o MINCS tem sido “o de buscar caminhos para resolvermos o problema da rádio”.
Por sua vez, o director nacional de Informação do MINCS, Rui Vasco, confirmou ao Maka Angolaa cabimentação regular de verbas à Rádio Ecclesia, sem especificar montantes.
Rui Vasco esclarece que o Ministério não presta apoio mensal à Rádio Ecclesia: “É à medida da disponibilidade orçamental e em satisfação aos pedidos que nos chegam.” E afirma ainda que há parceiros que não aceitam apoio governamental por julgarem que o mesmo pode comprometer a sua independência editorial. “O que concedemos não é uma ajuda, mas o cumprimento de um dever do Estado”, acrescenta Rui Vasco.
Segundo este interlocutor, a iniciativa enquadra-se no dever do Estado de fomentar a comunicação social privada. “Apoiamos a comunicação social de uma forma geral”, diz Rui Vasco. “Se perguntar aos outros órgãos de informação privados verá que também beneficiam de apoios”, enfatiza.
Rui Vasco reforça a ideia de que o apoio do Estado à Rádio Ecclesia a tem motivações benignas: “Não há contrapartidas. Não somos um balcão onde se processa o toma lá dá cá. Não é compra. O apoio está documentado em ordens de saque. É transparente porque sai do Orçamento Geral do Estado.”
Sobre o carácter discreto dos referidos apoios, o director nacional afirma: “Nós fazemos mais do que falamos. Não somos como os americanos, que, para concederem um cheque de US $5,000 a uma instituição têm de chamar a televisão. Isso é humilhante.”
Questionado se também recebe apoios do Ministério da Comunicação Social, o director da Rádio Despertar é categórico: “Nós não recebemos qualquer apoio do governo. Se é um direito para todos os órgãos privados, então vou já pedir uma audiência ao ministro para solicitar o que nos é de direito.”
O representante do Instituto dos Mídia da África Austral (MISA-Angola), Alexandre Solombe, reclama o facto de o governo, “até agora, não ter estabelecido os critérios legais de incentivo aos órgãos privados de informação, em conformidade com o Artigo 15 da Lei de Imprensa”.
Segundo Alexandre Solombe, os critérios passam pela regulamentação da Lei de Imprensa: “O chefe do Executivo, o presidente José Eduardo dos Santos, continua a violar, desde 2006, o postulado do Artigo 87 da mesma lei, ou seja, a regulamentação da lei no prazo máximo de 90 dias após a sua promulgação.” O presidente promulgou a lei a 28 de Abril de 2006.
Linhas editoriais da Rádio Ecclesia
A Rádio Ecclesia foi confiscada pelo governo em 1977, só retomando as suas emissões, em Frequência Modelada (FM), passados 20 anos.
Tornou-se na emissora líder de audiências em Luanda. No auge da popularidade da Rádio Ecclesia, em 2004, o então ministro da Comunicação Social, Hendrick Vaal Neto, acusou a emissora de praticar “terrorismo de antena”. Os ouvintes adoptavam-na como a “rádio do povo”, e a Igreja orgulhosamente assumia que a sua era a “rádio de confiança”.
Agora, a história é outra. Despedimentos colectivos de jornalistas e alterações profundas na linha editorial têm animado várias análises sobre o que terá acontecido à rádio que em tempos liderou as audiências.
Em Agosto e Dezembro passados, a direcção da Rádio Ecclesia despediu mais de 10 profissionais, entre os quais Abílio Cândido, Adriano Kubanga, Agostinho Gayeta, Hélder Luandino, Mayama Salazar, Manuel Augusto e Matilde Vanda. Actualmente, a rádio funciona com uma redacção reduzida a nove jornalistas. A direcção da rádio alega falta de fundos e indisciplina como causas de despedimento. Alguns jornalistas contra-alegam que foram despedidos pelo facto de terem um sentido crítico mais apurado.
Emissora Fantasma ou do Governo?
O apoio governamental à emissora católica é também controverso na medida em que o Estado continua a não reconhecer juridicamente aquela instituição.
O padre Quintino Kandanji refere que a proprietária da rádio, a Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST), tem discutido com o governo sobre a resolução do limbo jurídico em que a rádio se encontra.
“A Rádio Ecclesia nem sequer tem escritura pública. Não temos certidão de empresa”, declara.
O padre Quintino Kandanji conta que, nos seus encontros com o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, para tratar da escritura da rádio, lhe foi solicitada cópia do Diário da República com o decreto governamental sobre a devolução da emissora à Igreja Católica.
“Mas, o governo devolveu a rádio à igreja sem que a decisão do Conselho de Ministros tivesse sido publicada em Diário da República. Não há esse decreto de confirmação em Diário da República”, explica o director da emissora.
“Nós nem sequer podemos importar meios porque não temos os protocolos oficiais de empresa”, prossegue, acrescentando que a rádio continua a funcionar com uma licença provisória: “Até hoje não temos nada oficial.”
A 18 e 19 de Fevereiro de 1992, o Conselho de Ministros discutiu sobre o “Projecto de Decreto que anula a decisão que nacionalizou as instalações da Rádio Ecclesia ”, decidindo então pela devolução das instalações à Igreja Católica. O governo comunicou a sua decisão à Igreja Católica a 26 de Fevereiro do mesmo ano, mas o decreto nunca foi publicado em Diário da República, o que o tornou legalmente nulo.
Passado mais de um ano, a 30 de Setembro de 1993, o ministro da Comunicação Social, Hendrick Vaal Neto, emitiu um despacho autorizando a Rádio Ecclesia “a realizar as suas emissões em Frequência Modulada, Onda Média e Onda Curta”. O despacho funcionava como uma licença, uma vez que nele se podia ler: “Substitui para todos os efeitos legais o Alvará Provisório.”
Sobre o assunto, o director nacional de Informação, Rui Vasco, sublinha que o MINCS “está a trabalhar bem com a CEAST para conferir toda a legalidade a esse processo”.
De então para cá, o governo tem demonstrado a facilidade com que dispõe do ordenamento jurídico para dar com uma mão e retirar com outra. Ou seja, o governo entregou a Rádio Ecclesia, no plano material, mas conserva-a, como sua propriedade, no plano jurídico.
Rádio Despertar Acorda
O Maka Angola soube que a Rádio Despertar se encontra em situação jurídica similar à da Rádio Ecclesia.
“Tentámos abrir uma conta bancária e não foi possível, porque não temos escritura pública”, revela o director-adjunto da Rádio Despertar, Anastácio Queirós Chilúvia.
Em 2004, o Ministério da Comunicação Social concedeu um Alvará Provisório à empresa proprietária da rádio, a Academia Politécnica Lda., “exclusivamente para o licenciamento técnico das instalações e equipamentos do sistema emissor da Rádio Despertar pela entidade competente”. Por sua vez, essa entidade, o Instituto Angolano de Telecomunicações (INACOM), consignou, a 22 de Dezembro de 2004, a frequência 91,0MHz à Rádio Despertar, a fim de “não inviabilizar ou causar atrasos no processo de fabrico do equipamento destinado à estação de radiodifusão”.
Segundo a nota do INACOM, de 2004, “o curso normal de aprovação do respectivo projecto técnico, bem como do posterior licenciamento da estação referida, fica pendente de esclarecimento complementar respeitante às questões oportunamente colocadas”.
No plano material, o governo cumpriu com a parte referente aos Acordos de Paz, assinados com a UNITA. A Rádio Despertarr sucedeu à antiga Voz do Galo Negro (Vorgan), num figurino comercial e tutelado por uma empresa privada. Mas juridicamente a rádio por enquanto não existe.
A Voz Calada do Povo
Para além da questão jurídica, o governo tem apresentado argumentos ora legais ora técnicos que impedem a expansão do sinal da Rádio Ecclesia pelas províncias, através de rádios diocesanas.
Várias instituições internacionais, algumas ligadas à Igreja Católica, prestaram, em anos passados, apoio financeiro e material, avaliado em vários milhões de dólares, para a expansão da Rádio Ecclesia na maioria das 18 províncias.
Recentemente, em entrevista ao semanário O País, o presidente da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST), D. Gabriel Mbilingue, afirmou que o receio do governo em relação à autonomia e à expansão da rádio reside nos debates em directo, com a participação dos ouvintes.
“Aquilo que sempre criou problemas, não nos iludamos, são os debates”, assegurou o arcebispo do Lubango.
Segundo D. Mbilingue, “se há algum temor, talvez seja disto – aqueles programas radiofónicos que interagem com o cidadão na rua e sobre isso não temos controlo nenhum”.
Censura
Sob a direcção do padre Quintino Kandanje, nomeado em Outubro de 2011, os jornalistas passaram a queixar-se com maior frequência de actos de censura directa.
“Enquanto exerci as funções de editor, muitas vezes o padre Kandanji vinha dar-me ordens sobre o que tinha de ser censurado. Ele não justifica. Diz apenas ‘não convém’”, explica Agostinho Gayeta.
Como exemplo, Agostinho Gayeta citou uma entrevista do representante do MISA – Angola, Alexandre Solombe, sobre as dificuldades do exercício da liberdade de imprensa em Angola. “O padre [Kandanji] não esconde. Ele censura directamente. Foi à redacção e disse ‘isso passa, isso não’, pronto”, explica o interlocutor.
Ao nível da direcção, a rádio conta com um director de informação, o padre Artur Handa Savita, enquanto a redacção tem como editor-chefe o jornalista Manuel Vieira. Mas cabe apenas ao director-geral o estrito controlo editorial da rádio.
“Temos reuniões de pauta. Há jornalistas que trazem já os seus assuntos, a sua agenda. Isso não funciona connosco”, defende-se o Padre Kandanji.
E exemplifica: “O que é que eu corto? Aquelas palavras que ferem. Eu, por exemplo, não deixo passar o [general] Bento Kangamba a enxovalhar alguém para provocar uma reacção.”
Como método, “normalmente eu oiço a peça com o jornalista e digo o que deve ser cortado e porquê. Há jornalistas que depois agradecem. É o que a nossa consciência de serviço nos aconselha. Preservamos a imagem de que servimos o público”, diz o director da Ecclesia. E defende-se: “Fala-se apenas que o padre expulsou jornalistas e cortou aqui e ali. Há interesses obscuros sobre os quais não podemos ceder. Seja a oposição, o poder ou a sociedade civil têm interesses que podem subverter os valores que a Igreja preserva.”
O padre queixa-se ainda de que ninguém se lembra de mencionar que também ele já foi criticado por dirigentes da comunicação social “por manter os microfones abertos aos ouvintes nos debates de sábado”.
“Durante as eleições [de 2012], os bispos pediram-me para desligar os telefones [da rádio] para que os ouvintes não interviessem em directo. Eu disse que não, tinham de permitir que as pessoas falassem e deixámos os microfones abertos”, revela.
A grelha de programas da Rádio Ecclesia também tem sofrido cortes e mudanças profundas. Jornalistas e direcção divergem sobre as motivações.
Um dos programas eliminados é o Sem Dúvidas, apresentado por Manuel Vieira, sobre os problemas que enfermam a cidade capital de Luanda, segundo a voz dos citadinos. O programa era emitido às terças e quintas. “Os ouvintes eram muito críticos”, confessa um jornalista que prefere o anonimato.
“Vamos tirar mais programas da grelha”, anuncia o padre Quintino Kandanji. Para si, “os programas têm de ter continuidade e reflexo pastoral por ordem dos bispos”.
Sobre o Sem Dúvidas, o gestor reconhece que “era o programa de maior audiência da rádio, patrocinado pela BBC Trust”.
“Quando cheguei[ao cargo de director], pedi à BBC Trust para fazermos o controlo editorial do programa de forma equilibrada. O projecto chegou ao fim”, argumenta.
Doadores
Desde o seu relançamento, em 1997, a sustentabilidade da rádio tem dependido, sobremaneira, de doadores internacionais. Várias organizações da sociedade civil têm também contribuído para a grelha de programas, com projectos sobre cidadania, justiça e direitos humanos.
A era do padre Kandanji veio alterar a relação com certos doadores e com organizações da sociedade civil. O director da Rádio Ecclesia explica que várias dessas instituições têm retirado o seu apoio financeiro “porque a rádio mudou”.
Cita um caso como exemplo: “A Open Society fez-me uma proposta para obrigar o Estado a agir contra nós.”
Como prova, o director partilha um e-mail que lhe foi enviado pela delegação da Open Society em Angola, datado de 15 de Março de 2012, em que a Open Society ajuíza não haver interesse, por parte dos bispos da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST), “em levar a questão da extensão do sinal da rádio à mesa da discussão”.
No e-mail, a Open Society nota como se deu início a “um processo em Benguela de recolha de assinaturas para forçar o governo em autorizar a expansão do sinal, processo este que teve aderência da parte da Associação dos Leigos e no entanto a Rádio Ecclesia nem noticiou, os bispos nem sequer acolheram a iniciativa no sentido de poderem recolher mais assinaturas junto das suas dioceses”.
Com efeito, a Open Society anunciou o cancelamento temporário do projecto de apoio às rádios diocesanas, por um mês, para a tomada definitiva de uma posição sobre o seu contributo à Rádio Ecclesia.
A referida organização internacional foi mais longe e informou o seu parceiro de que iria tomar a iniciativa de convocar outros financiadores. “Aproveitaremos a oportunidade para reflectimos junto os demais doadores envolvidos no processo (União Europeia, BBC World Trust Service) para que possamos tomar uma decisão política em relação a este desinteresse da CEAST no processo”, lê-se na correspondência.
“Na rádio da Igreja, a linguagem deve ser de parceria. Temos de maximizar a acção da Igreja e não nos deixarmos puxar pela sociedade civil. A sociedade não nos pode impor uma agenda. A rádio é da Igreja segundo a consciência pastoral da Igreja”, reitera o gestor da emissora.
Um analista sumariza a situação da emissora católica com uma metáfora perspicaz: “a Rádio Ecclesia é a manta curta da Igreja Católica. Ou cobre a cabeça ou os pés.”
Ámen.