Há dias, centenas de cidadãos reuniram-se em Viana para enterrar Rufino António, de 14 anos, assassinado a tiro por um soldado no passado dia 5 de Agosto, enquanto efectivos das FAA coordenavam demolições em massa no Bairro Walale. As autoridades angolanas têm recorrido sistematicamente ao uso da força militar para realizar demolições em bairros pobres, como se se tratasse de operações contra inimigos armados. As autoridades não têm manifestado qualquer preocupação ou sensibilidade em relação aos enormes prejuízos económicos e psicossociais que criam entre as famílias afectadas, e nem sequer em relação às próprias vidas humanas, não hesitando em assassinar cidadãos de forma indiscriminada.
Helena João Teka, de 38 anos, luta há mais de três anos pelo direito a construir e a viver no seu terreno, situado na área do Mucula Ngola, Bairro Vila Flor, na zona do Bita Sapú, município de Viana. Na primeira demolição de que foi vítima, em 2012, um oficial da Polícia Nacional alvejou um irmão seu, que vivia numa casa vizinha. Em 2013, Helena reergueu a sua casa, a qual foi novamente demolida, desta vez com os dois filhos menores lá dentro, enquanto estes dormiam. Outro irmão, ao protestar, foi morto a tiro no local.
Porque não desiste de lutar para reaver a parcela de terreno de que reclama o direito de superfície, Helena Teka foi violada por militares, ameaçada de morte e recentemente informada de que será processada criminalmente por “burla”. O caso envolve o nome do ministro de Estado e chefe da Casa Civil do Presidente, Edeltrudes Costa, o comandante da Região Militar de Luanda, general Simão Carlitos “Wala”, o conselheiro do comandante da Marinha de Guerra de Angola, vice-almirante Pedro Chicaia, e outras altas patentes militares interessadas no terreno.
Para exemplificar a perseguição a que diz estar regularmente sujeita, Helena Teka recorda a ameaça mais recente: a 17 de Agosto, por volta das 15h00, terá recebido uma chamada telefónica, supostamente pelo vice-almirante Pedro Chicaia, que ficou também com uma parcela do terreno em disputa. “Insultou-me, chamou-me de bruxa, porque eu insisti em denunciar o caso, e avisou que vou sofrer muito até acabar com a minha vida”, relata a cidadã.
Antes, a 17 de Junho passado, por volta das 4h00 da madrugada, uma composição de militares em número não determinado bateu à porta da residência onde Helena Teka vive temporariamente com seis sobrinhos e a mãe, para lhe ordenar que comparecesse na Região Militar de Luanda no mesmo dia, onde deveria reunir com o general Wala. “À minha sobrinha, que abriu a porta, disseram que se eu faltasse seria presa, por ter ofendido os generais. Não é a primeira vez que os militares me vêm ameaçar de madrugada”, conta Helena Teka.
Nesse dia, o general Simão Carlitos “Wala” promoveu um encontro com o advogado do ministro Edeltrudes Costa, Eurico Paz Costa, ao qual Helena Teka não compareceu, apesar das ameaças da madrugada. Como se notará adiante, em ocasião anterior, a Região Militar recusou-se a dialogar com Helena Teka quando esta compareceu acompanhada por advogados da Associação Mãos Livres.
Segundo o Maka Angola apurou junto dos participantes na referida reunião, “uma das conclusões mais importantes a que [se] chegou na reunião foi que a Sra. Teka ou Milena faz acusações falsas, burlou os militares e deve ser processada criminalmente”, lê-se na mensagem em posse deste portal.
Frente ao terreno em disputa, separado por uma rua asfaltada que liga à Via Expresso, está a extensa propriedade murada do ministro de Estado Edeltrudes Maurício Fernandes Gaspar da Costa. “É uma quinta com quadras desportivas, cavalos, muito luxo e muita coisa”, diz a vizinha Helena João Teka.
Desde há meses, o Maka Angola tem investigado esta tragédia, contactando com as partes intervenientes. Eis o que conseguimos apurar.
A primeira demolição
A 7 de Novembro de 2012, por volta das 4h00, o soldado José Samuel, que vivia numa casa de três quartos e sala ao lado da irmã Helena, despertou com o movimento das demolições e recusou-se a acatar a ordem policial para abandonar a residência. Tinha recebido um crédito bancário para construir a residência. Era soldado da 1ª Companhia, do 2º Batalhão da Brigada de Forças Especiais (Comandos).
“Eu tranquei-me dentro de casa. Quatro polícias arrombaram a porta, mas não tiveram força suficiente para me tirar de lá. Um oficial de uma estrela entrou e disse-me que se eu resistisse matar-me-ia. Eu pensei que ele estava apenas a ameaçar-me. Tirou a pistola [do coldre] e deu-me um tiro na perna esquerda”, recorda José Samuel. “Quando me viu a sangrar muito, arrastou-me lá para fora, e então partiram a casa.”
Nesse dia, a polícia desalojou mais de 400 famílias, incluindo a de Helena Teka.
Depois de receber, a suas expensas, os primeiros-socorros num posto médico local, o soldado foi levado para a unidade militar no Cabo Ledo, onde servia. Daí o transferiram, dois dias depois, para o Hospital Militar Central, acompanhado pela guia de evacuação dos Serviços de Saúde das FAA nº 622/2012.
A segunda demolição
Ciosa dos seus direitos, Helena João Teka voltou a construir no mesmo terreno. Muitos vizinhos também o fizeram, alguns montando apenas tendas e outros erguendo casas precárias em chapas de zinco, a que chamam “bate-chapas”.
Helena Teka encontrava-se a caminho do Uíge, sua terra natal. Os seus filhos — Hélio Sebastião Gomes, de sete anos, e Cátia Sebastião Gomes, de três anos — dormiam quando uma operação relâmpago deitou abaixo a casa onde viviam. Eram perto das duas horas da madrugada de 26 de Abril de 2013 quando as máquinas chegaram ao local, apoiadas por um forte aparato policial, envolvendo helicópteros, Polícia de Intervenção Rápida, Polícia Montada e Brigada Canina, assim como o Corpo de Bombeiros.
Baptista João, de 26 anos, servira na 2ª Companhia do 1º Batalhão da Brigada das Forças Especiais (Comandos). Convivia com os amigos a poucos metros de casa. Não teve tempo de retirar as crianças, porque a demolição foi demasiado rápida. “Revoltado, dirigiu-se aos comandantes da Polícia que dirigiam a operação para falar com eles. Estes não queriam ouvi-lo e um deles disparou”, explica o vizinho Salvador Manuel Francisco, testemunha da tragédia. A fotografia em posse deste portal mostra como a vítima foi atingida fatalmente pelas costas, com um tiro na coluna.
O saudoso Hélio Gomes.
A finada Cátia Gomes.
Baptista João, após ter sido atingido.
“Eu próprio vi a comandante Bety [Comissária Elisabeth Rank Frank] a dirigir a operação. Todos aqui a conhecem. Estava também o comandante Ribas e muitos outros chefes”, afirma o mecânico Nascimento Domingos, de 41 anos, que teve duas residências demolidas.
Nascimento Domingos foi dos primeiros a tomar conhecimento da demolição da casa de Helena Teka. Com um grupo de vizinhos, tentou interceder junto da Polícia para que esta os deixasse socorrer as crianças. “Os comandantes da polícia não permitiam que nós retirássemos as crianças dos escombros. Tínhamos o número do general Laborinho Lúcio [secretário de Estado do Interior], ligámos e foi ele quem ordenou aos bombeiros para que retirassem os meninos”, conta.
“O meu filho José, de um ano, morreu no dia da demolição. Estávamos no óbito [velório] quando a polícia apareceu, até com helicópteros, em estado de guerra, e diziam que havia [no bairro] UNITA’s e comandos.” “Eu participei da remoção das crianças dos escombros, ainda estavam com vida. A menina estava sem dentes”, conta Salvador Francisco. A testemunha denuncia como um dos comandantes da Polícia envolvidos na operação, cujo nome desconhece, o retirou da sua viatura, que deveria transportar as crianças para receberem assistência médica. “Deu-me uma chapada e o outro veio e recebeu-me os documentos para não sair dali”, enfatiza. Sabendo do seu infortúnio, a Polícia concedeu-lhe, depois, algum tempo para se retirar de casa e transferir ordeiramente o velório para casa de familiares noutro bairro. A sua residência foi demolida a seguir.
“Nós levámos as crianças ao Hospital Geral de Luanda, ainda estavam vivas, mas todas machucadas. Não tinham salvação”, lamenta o mecânico.
Nascimento Domingos alega que vários jovens foram detidos, espancados e que a alguns deles foram administradas injecções. “Todos os que receberam injecções da Polícia na Brigada Anti-Crime, em Viana, ficaram um tempo detidos na Comarca Central de Luanda e, depois de serem libertados, acabaram por morrer”, denuncia.
Após o funeral dos filhos, Helena João Teka regressou ao terreno onde os perdera. Helena diz-me que quis estar ali, onde eles morreram. Denuncia como vários efectivos da Polícia da Intervenção Rápida, que cuidavam do terreno, aprisionaram-na e revezaram-se a violá-la, para definitivamente a expulsarem de lá.
Quando Helena começa a contar a brutalidade com que a violaram, tem um ar pesaroso, mas de quem quer expulsar todo o mal que lhe têm causado, sem ódio, sem vergonha e com toda a dignidade. Paro-a. Faço-lhe uma pergunta para desviar a conversa. Não tenho coragem de ouvir mais.
O olhar de Helena João Teka é profundo e triste.
Leia, na quarta-feira próxima, 24 de Agosto, a segunda parte. Serão reveladas as versões do ministro de Estado e chefe da Casa Civil do Presidente da República, Edeltrudes Costa, por via do seu advogado. De fonte próxima do general Simão Carlitos “Wala”, do vice-almirante Pedro Chicaia, o historial do terreno e a terceira demolição. As queixas remetidas à Procuradoria-Geral da República por Helena Teka que nunca obtiveram resposta, bem como a recente participação do ministro a este órgão, também serão abordadas. O governador de Luanda, general Higino Carneiro, intervém no caso para exigir esclarecimentos, e o Maka Angola descreve o resultado: confuso.