Os crimes cometidos pela Polícia Nacional no passado dia 31 de Agosto atingiram níveis máximos de crueldade, mesmo para os padrões da violência policial em Angola. Na 8ª Esquadra, no Rangel, três cidadãos foram barbaramente torturados até à morte. É um facto inegável: a execução sumária de cidadãos pela Polícia Nacional tornou-se prática oficiosamente institucionalizada em Angola.
Uma das vítimas — José Padrão Loureiro, 40 anos — foi enterrada no domingo pela família. Os seus entes queridos denunciam as condições em que encontraram a vítima. A irmã, Eurídice Padrão Morais de Brito, médica, assistiu à autópsia: “O que nos chocou foi a forma como o torturaram. A própria médica legista ficou chocada e disse que nem um animal se abatia daquela forma. O meu irmão teve três fracturas no crânio, tinha o corpo todo machucado, os braços virados, de partidos que estavam, e as coxas pareciam queimadas, tal eram os hematomas da pancadaria.”
E a médica desabafa: “Eu já recebi muitos casos de agressão no Hospital Neves Bendinha, mas nunca vi um caso igual ao do meu irmão.” Teria sido menos chocante “se a Polícia tivesse fuzilado o meu irmão com um tiro. Matá-lo daquela forma tão bárbara, hedionda é incompreensível.”
No certificado de óbito pode ler-se que a causa da morte de José Padrão Loureiro foi um “trauma craneocefálico total e [trauma do] abdómen”, sublinhando-se que estes traumas resultaram de “agressão com objeto contundente”.
Segundo Eurídice de Brito, a Polícia levou o corpo para a morgue do Hospital Josina Machel, tendo e registado no boletim de ocorrência que José Padrão Loureiro “Zeca” tivera “morte súbita na via pública”, limitando-se a Polícia a recolher o cadáver. Na morgue, o cadáver foi colocado na Câmara 5, reservada aos corpos não reclamados ou por identificar.
“Pedimos explicações à Polícia, e eles exigiram-nos que explicássemos o que aconteceu. Eles foram buscar o meu irmão a casa, levaram a mulher dele em seu lugar; o meu irmão foi à esquadra, e então mataram-no. E perante isto nós é que tínhamos de dar explicações à Polícia?”, indigna-se Eurídice de Brito.
O Maka Angola contactou o porta-voz do comando provincial da Polícia Nacional, Mateus Rodrigues, a quem prestámos informações sobre o sucedido, solicitando-lhe uma reacção oficial. A resposta lacónica do porta-voz foi a seguinte: “É dirigir um documento ao comandante provincial de Luanda. Ele vai despachar para mim e, se tiver autorização, responderei.”
O comandante provincial, comissário José Sita, não respondeu às chamadas telefónicas.
Mas o que aconteceu realmente?
Segundo nos conta Eurídice de Brito, às 7h30 dois patrulheiros da Polícia Nacional dirigiram-se à casa do seu irmão. “Disseram à mulher que queriam falar com ele com urgência e, como estava ausente, detiveram a mulher para o obrigar a ir à esquadra.”
A viúva, Margarida Maria Armando, recorda que, antes de a levarem para a esquadra, a obrigaram a mostrar a casa de um amigo de José Padrão Loureiro, conhecido apenas por Ti Paulo. “Eu comecei a girar com eles no bairro, porque não me lembrava da casa, no Zango I. Tinha lá ido apenas uma vez, de noite. Então, o polícia perguntou-me se eu sabia como se joga com uma bola de trapo, e como eles brincariam comigo como se eu fosse bola de trapo deles.”
Retomando o seu relato, Eurídice de Brito refere que o irmão se dirigiu de imediato à unidade policial do Zango I, de motorizada. “Assim que o viram, acusaram-no logo de ser um bandido altamente perigoso e começaram a bater-lhe. Obrigaram-no a indicar a casa do Paulo, e detiveram este último, assim como a um jovem de nome África.”
“Quando regressaram à Esquadra do Zango I já estavam a sangrar com a porrada que apanharam pelo caminho”, diz a viúva, que foi libertada a seguir.
Horas depois, os três detidos foram transferidos para a 8ª Esquadra. Essa unidade encontra-se sob comando de Divisão do Rangel, dirigido pelo superintendente-chefe José Amaro Franco
A mãe de Zeca, Maria Padrão, dirigiu-se à 8ª Esquadra. Segundo relatou ao Maka Angola, conversou nessa altura com o investigador Batalha, que estava encarregado de interrogar África.
“Ele [Batalha] explicou-me que o meu filho era um indivíduo altamente perigoso e fazia parte de um grupo de assaltantes que roubaram um [Hyundai] Elantra na Via Expresso”, conta-nos Maria Padrão.
E recorda a cena seguinte: “Eu fiquei admirada. Uma mãe não sabe onde um filho anda. O investigador disse-me, ‘mãe espera. Estamos a fazer um trabalho de investigação’. Comecei a ouvir gritos.”
“A Polícia está a inventar”, insurge-se a viúva. “O meu marido era mecânico de motorizadas, carros não. O meu marido gostava muito de rua, era uma pessoa muito popular e gostava da sua cerveja. Podia ser malandro comigo, mas nunca passou a noite fora. Nunca o vi com peças de carro”, argumenta a mulher. Alegadamente, a Polícia suspeitava de que Zeca tinha “desmanchado” a viatura, para vender as peças.
A família recorda que, no dia 31 de Agosto, o suposto queixoso e proprietário da aludida viatura não compareceu na esquadra para identificar os suspeitos ou fazer a acareação.
“Quando saí da sala, vi um indivíduo deitado no chão. Desmaiou com a porrada e estavam a despejar-lhe água. Pedi ao meu filho Edmundo para ir ver se era o Zeca. Não era”, conta a mãe.
Ao fim da tarde regressou a casa. De manhã cedo dirigiu-se novamente à esquadra para saber do caso e do estado do filho e notou que não lhe respondiam. “Pedi a um amigo da Polícia para inquirir junto dos colegas sobre o que se passava. Informaram-no que ele [Zeca] não aguentou a tortura e morreu.”
“Eu só quero justiça. Um carro compra-se. A vida do meu filho não se compra. Eu posso comprar um carro, mas não um filho. Eu só quero justiça”, pede a mãe.
“O meu irmão, também conhecido como Mboió, também foi mecânico das motas da Polícia. A confusão dele era tirar o escape da mota, fazia barulho, fazia rachas [exibição com o pneu dianteiro da mota no ar] e já teve problemas com a Polícia por causa disso. Mas roubar não”, diz a irmã.
Sobre os outros dois detidos, a família Padrão Loureiro informa que os familiares compareceram ao funeral de Zeca no domingo passado, mas que continuam sem informações sobre o paradeiro de Paulo e de África. Não sabem se ainda estão vivos ou se já foram assassinados também. O Maka Angola continuará a investigar o caso.
Os outros mortos
Eurídice de Brito aproveita a ocasião para se referir a outros dois indivíduos torturados e assassinados no mesmo dia na 8ª Esquadra, em cujos boletins de ocorrência deixados na morgue se indicava claramente serem também detidos da Polícia.
“Falei com o pai de um dos mortos, para fazermos uma denúncia colectiva, e ele disse-me que sendo [um membro] das massas, queria apenas chorar o filho”, conta Eurídice de Brito. “O pai não aceitou dizer-nos o seu nome ou o do filho, para não ter mais problemas com a Polícia. Disse que a justiça divina iria resolver a morte do seu filho. Como chegou primeiro, mostrou apenas a parte da autópsia em que se referia a ‘traumatismo craniano’. Vi o corpo e também estava todo machucado.”
Ainda assim, a médica pôde transmitir-nos aquilo que o referido pai lhe contou sobre a detenção do filho. “A Polícia aparentemente estava a perseguir uns jovens suspeitos de terem roubado botijas de gás, e este jovem ia a passar; quando viu a confusão, não sabendo o que se passava, parou. A Polícia prendeu-o. Foi morto por ter parado pensando que, como inocente, não tinha de fugir.”
Segundo Eurídice de Brito, um dos agentes da 8ª Esquadra, com pena do pai, informou-o de que o filho estava na Câmara 5.
Pronunciando-se sobre estes casos, a deputada da UNITA Mihaela Webba afirma que “não temos uma polícia republicana que actue no sentido da defesa do interesse público.”
“Não se pode esperar outro comportamento da Polícia senão essa selvajaria. Não há princípio de dignidade da pessoa humana na sua actuação. Não se respeita o direito à vida, o direito à integridade física”, acusa a deputada.
Mihaela Webba diz mesmo que “com essas execuções sumárias constantes, a pena de morte está institucionalizada pela Polícia Nacional”.