Durante o interrogatório, Aisha Lopes, de 36 anos, via, do outro lado da janela, o seu bebé de 26 dias a chorar, exposto ao sol, atirado ao ar por membros do Serviço de Investigação Criminal (SIC), que com ele gozavam: “filho de terrorista”; “falem com o bebé em Somali”. Ainda em convalescença, depois de uma cesariana de alto risco por ser diabética, Aisha Lopes foi interrogada por seis agentes que se revezaram durante quase dez horas, ameaçando espancá-la, recusando-lhe água, não permitindo que tomasse os seus medicamentos. Aisha Lopes acabou por desmaiar.
“Supliquei tanto para que me trouxessem o meu bebé, mas nada. Depois de ter recuperado do desmaio, trouxeram-mo e estava todo queimado, os lábios sem pele. Estava mal, depois de tantas horas exposto ao sol.”
Porque é que tudo isto aconteceu?
Por volta das cinco da manhã do dia 2 de Dezembro de 2016, mais de 20 agentes do SIC e dos serviços de segurança irromperam no apartamento de Aisha Lopes, e detiveram-na, juntamente com o seu marido, Angélico Bernardo da Costa (Mujahid Kenyata), de 39 anos.
Reviraram a casa e levaram os computadores, os telefones, mais de 150 livros, todos os documentos pessoais do casal e dos filhos, cartões bancários e “até os meus relatórios médicos para a consulta. Não deixaram um papel em casa”.
“Os agentes gozavam connosco. Diziam: ‘O chefe dos terroristas em Angola não tem nada em casa?’ Nós somos pobres”, confessa Aisha Lopes.
Conduziram-na à pequena loja de venda de roupas muçulmanas, situada no Bairro Mártires de Kifangondo. “A loja era tão pequena que os 18 investigadores e polícias que me acompanharam não cabiam lá dentro. Puseram-se a bater nas paredes para verem se lá havia alguma coisa dentro. Destruíram os manequins para verem o que tinham dentro”, conta.
“Pediram-me o computador da loja, eu disse que não tinha. Comunicaram ao chefe que a loja estava limpa e ele ordenou que me levassem para onde tinham encaminhado os 15 [jovens acusados pela Procuradoria-Geral da República de tentativa de assassinato do presidente da República e de golpe de Estado, porque foram encontrados a discutir um livro sobre não-violência].”
Aí, em Cacuaco, “mantiveram-me no carro com a arma apontada contra mim e o bebé, durante cerca de uma hora, com rendição do agente que segurava a arma”.
Ana Júlia Cobel Kieto (nome de registo) apresenta-se orgulhosamente: “Eu sou Aisha Lopes, estilista de moda islâmica, e tenho um ateliê em casa. Eu e o meu marido somos muçulmanos desde 1996.” Não seguiu a profissão da mãe, que é médica, tendo ficado apenas pelo terceiro ano do curso de medicina. O marido, que durante muitos anos trabalhou como fiel de armazém, encontrava-se desempregado por altura da sua captura, mas contribuía para o sustento da família como vendedor de roupas para muçulmanos.
O casal e mais cinco co-réus são acusados pela procuradora Eugénia Santos, desde 26 de Abril passado, de fazerem parte do grupo terrorista Estado Islâmico (Isis) e de terem jurado “fidelidade e obediência a Abu Bakri Al Bagdadi, líder do Isis ou Daesh, e com isso foram divulgando e ensinando a fé islâmica em Angola”. A Procuradoria-Geral da República usou a Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e de Financiamento ao Terrorismo (lei n.º 12/10) para acusar os jovens.
Como prova dos “actos terroristas”, a acusação refere que foram apreendidos, em posse dos sete arguidos, cinco computadores portáteis, 11 telefones móveis, sete pen-drives, 168 livros diversos, dois passaportes angolanos, uma PlayStation, um disco rígido, duas mochilas e uma carteira de documentos.
Khadija Salvador, mãe do co-arguido Joel Said Salvador Paulo (de 22 anos), acompanha Aisha Lopes e tem uma palavra a dizer sobre os bens apreendidos: “A PlayStation é do sobrinho do meu marido, que tinha ido passar uns dias connosco. A carteira é do meu filho. Até os 30 mil kwanzas que eu lhe tinha dado para comprar roupa eles [SIC] levaram. Depois da minha casa, foram à da minha irmã, onde exigiram todos os telefones da família, até dos miúdos, e todos os livros, até documentos do carro, levaram tudo”. Em breve falaremos do seu filho, Joel Said Salvador Paulo.
De entre os livros apreendidos, os peritos do SIC e dos outros serviços concluem que “38 são de carácter político, com elevadas tendências radicais e subversivas”.
O Ministério Público justifica assim a detenção dos acusados: “Os actos de terrorismo constituem uma grave ameaça para todos os estados do mundo, convindo por isso que haja um combate rigoroso e oportuno, e tendo em atenção que o agente ou membro aderente ao grupo terrorista dificilmente é distinguido dos demais.”
No entanto, apesar desse apelo global de combate ao terrorismo, a Procuradoria-Geral da República reconhece ter solicitado “subsídios ao Gabinete da Interpol / SIC e ao Ministério das Relações Exteriores sobre o posicionamento oficial da República de Angola em relação ao Estado Islâmico e os seus líderes, (…) porém sem respostas”. Significa isto que o Estado angolano, do qual a PGR faz parte, não tem posição sobre o Isis?
Também sem resposta ficou a carta rogatória dirigida “às autoridades judiciárias da República Federativa do Brasil, solicitando a realização de diligências instrutórias internacionais”.
Um especialista angolano em matéria de inteligência, familiarizado com o caso, desvaloriza a acusação: “Não há matéria capaz de imputar responsabilidade criminal sobre os acusados, tanto do ponto de vista material quanto do ponto de vista moral. O processo está bastante vazio em termos de investigação e, logo, não tem consistência jurídica.”
Aisha Lopes não é estreante enquanto alvo de acusações à maneira estalinista. Recorde-se, de resto, que, no regime de Estaline, o infame chefe da segurança, Lavrentis Beria, apresentava como seu grande trunfo a capacidade brutal de fazer qualquer pessoa confessar “que é o rei de Inglaterra”.
Até 1986, o pai de Aisha Lopes, Ndom Zuão de Gouveia Kieto, foi director nacional da Segurança do Estado, e nessa condição foi acusado de tentativa de golpe de Estado. “O julgamento foi secreto. A família soube pelo jornal que ele tinha sido condenado a 12 anos de prisão e enviado para o [Campo Prisional do] Bentiaba.”
“O meu pai morreu envenenado, em 2003, por uma ex-colega da DISA [Direcção de Informação e Segurança de Angola, primeira designação dos serviços de segurança do Estado]”, conclui Aisha Lopes.
O interrogatório
Aisha Lopes revela algumas das perguntas que os seis interrogadores lhe fizeram, vezes sem conta, revezando-se a atormentá-la “com ameaças de porrada”, enquanto lá fora os outros agentes “brincavam” com o “filho do terrorista”.
“Perguntaram-me desde quando é que o meu marido é jihadista. Desde quando é ele o chefe dos terroristas em Angola. Qual é a data da viagem para a Síria. Para quando está marcado um acto de terrorismo em Angola. Faziam perguntas sem sentido. Diziam que o interrogatório só terminaria quando eu dissesse o que eles queriam ouvir.”
Aisha Lopes explica ainda que lhe foi mostrado o conteúdo da sua página de Facebook, que comprovaria o seu radicalismo. No entanto, essa página é essencialmente “sobre moda muçulmana. Uso para promover o meu trabalho como estilista. O que o SIC imprimiu é sobre moda”.
Para além da moda, “eu tinha um programa, ‘Chá de Interacção’, de encontros com mulheres não muçulmanas para explicar a religião islâmica como uma escolha nossa e para esbater preconceitos. Eu publicitava esses encontros na minha página. Usaram isso para acusar-me de estar a recrutar pessoas para o Estado Islâmico”.
“O Said perguntou-me uma vez [em conversa no Facebook] porque estavam a falar mal dos muçulmanos que defendem a sua pátria. Eu respondi: a verdade é uma faca de ponta afiada que dóiiiiii! Eles [SIC] adulteraram para dizer que eu escrevi que o Mujahid Kenyata [seu marido] é o ponta-de-lança do Estado Islâmico em Angola.”
Muçulmanos durante uma oração, no bairro Mártires de Kifangondo.
“O que eu disse [cabia em] duas folhas. Os procuradores inventaram. Meteram coisas no meu depoimento que eu não disse e não me deixaram ler. Obrigaram-me a assinar sem ler”, denuncia.
Como exemplo da adulteração das suas declarações, explica que definiu Mujahid como “aquele que luta pela causa de Deus. Mujahdeen”.
“Os procuradores adulteram, colocando, como declaração minha, que os mujahdeens são aqueles que põem bombas, matam crianças, decapitam. Deram-me um documento de duas folhas para assinar, depois meteram-me oito folhas à frente”, explica.
Aisha Lopes só se apercebeu das adulterações durante a acareação, quando a procuradora Elisete da Graça leu o tal documento de oito páginas. “Eu comecei a dizer o que tinha dito e o que não tinha dito, e ela foi riscando o que não eram declarações minhas. No dia seguinte veio outro procurador e obrigou-me a assinar outro depoimento. Tudo o que eu não tinha dito e que foi riscado no dia anterior voltou a ser colocado.”
“O procurador deu-me um advogado oficioso, que se apresentou apenas como Dr. Wilson, e este exigiu que eu assinasse o documento. Disse-me: ‘Você colabora só com a verdade para sair daqui.’ Fui coagida a assinar o documento sem ler.”
Para comprovar o clima de opressão a que foram submetidos, Aisha Lopes revive o dia da acareação, juntamente com os sete co-arguidos, à noite.
“O Lando estava sentado ao meu lado. Eu deixei cair a fralda que usava para abanar o bebé, por causa do calor. Pedi que ele apanhasse a fralda porque tinha dificuldades em baixar-me, com as dores e o bebé ao colo. Os cinco homens armados que estavam atrás de nós apontaram logo as armas à cabeça do Lando e manipularam [balas na câmara]. Ele teve calma, apanhou a fralda e deu-ma.”
Aisha Lopes esteve detida nas instalações inoperantes do Tribunal Municipal de Cacuaco durante 11 dias. “A costura da cesariana abriu três vezes. Mas eu estava proibida de ter acompanhamento médico. Mesmo sentada, se me mexesse ou tentasse levantar-me, os militares (que diziam que eram da UGP – Unidade de Guarda Presidencial) manipulavam logo as armas. Passávamos os dias sentados, com as armas apontadas contra nós.”
Mariana de Abreu, coordenadora da Amnistia Internacional em Angola e Moçambique, não tem dúvidas: “A forma como Aisha Lopes tem sido tratada pelas autoridades policiais em Angola, com ameaças de espancamento, chacotas e maus-tratos ao seu filho pequeno, é grave.”
A 13 de Dezembro passado, Aisha Lopes e Fátima Salvador, a segunda mulher do grupo, saíram em liberdade condicional, com a medida de coacção de termo de identidade e residência. Detidos há sete meses encontram-se Angélico Bernardo da Costa, Joel Said Salvador Paulo, Bruno Alexandre Lopes dos Santos, Lando Panzo José “Mohamed Lando” e Dala Justino Camuejo “Yassin Ramadan Camueji”. O envolvimento colectivo e de cada um deles, bem como os respectivos perfis, serão apresentados aqui proximamente.
O analista jurídico Rui Verde descreve a acusação do Ministério Público como um exemplo da utilização abusiva dos instrumentos do chamado “Direito Penal do Inimigo”. O conceito de Direito Penal do Inimigo resulta dos estudos desenvolvidos pelo académico alemão Günther Jakobs, decorrendo da necessidade de se elaborar um Direito Penal especial contra inimigos, a que o Estado não sujeitaria os seus cidadãos, mas apenas os seus inimigos.
“Ora, a aplicação destas normas a Aisha Lopes revela que o Estado Angolano considera os seus cidadãos inimigos”, remata Rui Verde.
A conversão
A conversão de Aisha Lopes e de Angélico Bernardo da Costa é digna de registo. Ambos eram rappers e faziam parte do movimento inicial underground de hip hop, com Phathar Mak, Kool Klever e Yannick Ngombo, entre outros músicos hoje bastante conhecidos.
“Eu era a Black Queen e ele [Angélico] era o MC Jegas. Entrámos para o Islão por via das nossas constantes pesquisas sobre o pan-africanismo, o movimento negro nos EUA, e tínhamos como ídolo o Malcolm X”, explica.
“Convertemo-nos e pensámos que encontraríamos no Islão o que inspirou Malcolm X. Percebemos que era diferente, mas aderimos à mesma e cumprimos o Alcorão, graças a Deus. Deixámos o rap e deixámos de frequentar lugares ilícitos”, diz Aisha, sorrindo.
Desde então, Aisha Lopes tem sido um dos rostos mais visíveis da divulgação do Islão em Angola, participando regularmente em debates de rádio e televisão.
Oficialmente, o governo angolano proíbe a prática pública do Islão em Angola, por defini-la como uma religião ilegal no país, mantendo a ordem de encerramento das mesquitas. As que praticam cultos fazem-no à revelia da decisão governamental.
A 26 de Novembro de 2013, entre vários pronunciamentos oficiais contra o Islão, o director nacional da Administração da Justiça, do Ministério da Justiça e Direitos Humanos, Vitorino Mário, declarou à Rádio Nacional de Angola: “Nunca, em momento nenhum, foi reconhecida a religião islâmica em Angola. Consequentemente, toda a actividade religiosa ligada ao islão em Angola decorre à margem da lei.”
Para o presidente da Comunidade Islâmica em Angola, David Já, “o que assistimos é um teatro, uma farsa dos órgãos de segurança.”
“Angola tenta, a todo o custo, chamar para si atenção internacional. Essa medida visa silenciar a religião islâmica em Angola, detendo os jovens que são mais activos nas redes sociais, onde têm estado a tecer comentários e a promover o Islão, no âmbito da liberdade de expressão”, afirma.
“Se o governo pretende acabar com a religião Islâmica em Angola deve faze-lo deve procurar outros argumentos e não prender jovens à toa. Ler livros não é crime.