NOTA SOBRE O REGIME DE REPATRIAMENTO DE CAPITAIS: UMA AMNISTIA TÉPIDA
Se o famoso discurso de João Lourenço sobre o repatriamento de capitais se reconduz à proposta de lei elaborada pelo Banco Nacional de Angola, que aprova o regime especial de regularização tributária, é caso para usar a velha expressão “a montanha pariu um rato”, ou melhor, um ratinho tépido.
Lemos com atenção e espírito construtivo a referida proposta, mas, a não ser que esta seja complementada por um pacote legislativo sério, em si mesma esta nova lei não passa de uma simpática lei de amnistia. Mais uma…
A primeira questão da lei é simbólica. Trata-se de uma lei que parece uma imitação dos famosos Regimes de Regularização Tributária (RERT) aprovados em Portugal, e cuja principal função terá sido “lavar” os dinheiros ilegalmente recebidos pelo então primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates, hoje acusado de vários crimes financeiros, e pelo banqueiro do regime português, e também do regime angolano, Ricardo Salgado (antigo dono do BESA).
Vejamos então. O artigo 1.º da proposta de lei angolana determina como objecto:
“O presente diploma estabelece o regime de regularização fiscal e cambial aplicável aos elementos patrimoniais que não se encontrem no território angolano, em 31 de Dezembro de 2017, e que consistam em depósitos bancários superiores a cem mil dólares dos Estados Unidos da América ou equivalente em outra moeda estrangeira, certificados de depósito, valores mobiliários e outros instrumentos financeiros, incluindo apólices de seguro do ramo ‘Vida’ ligados a fundos de investimento e operações de capitalização do ramo ‘Vida’.”
O artigo 1.º da norma portuguesa (lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro) prescreve:
“O presente regime excepcional de regularização tributária aplica-se a elementos patrimoniais que não se encontrem no território português, em 31 de Dezembro de 2010, que consistam em depósitos, certificados de depósito, partes de capital, valores mobiliários e outros instrumentos financeiros, incluindo apólices de seguro do ramo ‘Vida’ ligados a fundos de investimento e operações de capitalização do ramo ‘Vida’.”
A simples leitura do primeiro artigo de ambos os diplomas, que aliás tem a mesma epígrafe, “objecto”, demonstra facilmente que estamos perante uma cópia. As restantes normas contêm algumas modificações, mas no essencial apresentam poucas diferenças.
Aliás veja-se o caricato copy-paste no artigo 10.º da proposta, onde consta:
“Artigo 10º
Dúvidas e omissões
As dúvidas e omissões resultantes da interpretação e aplicação do presente diploma são resolvidas pela Assembleia da República.”.
Parece que será a Assembleia da República de Portugal e não a Assembleia Nacional de Angola quem resolverá as dúvidas e omissões que eventualmente surjam…!
Ora, do ponto de vista simbólico, ir buscar a Portugal uma lei que terá servido para um primeiro-ministro “branquear” os seus crimes não é de todo a melhor mensagem política que se pode enviar à sociedade. Pelo contrário, é uma espécie de convite à impunidade.
E tal consideração faz-nos entrar na apreciação técnica do princípio fundamental em que assenta o diploma apresentado pelo Banco Nacional de Angola. Como se explica na Exposição de Motivos, este assenta no princípio da “‘voluntary disclosure’, com isenções ou cobranças de taxas simbólicas, para a regularização de recursos, bens ou direitos, isto é, de elementos patrimoniais localizados no exterior e não declarados, de acordo com a legislação fiscal vigente”.
“Voluntary disclosure” quer dizer “divulgação voluntária”, e muito simplesmente é um convite às pessoas que tenham dinheiro (ou outros bens) no estrangeiro a trazer esse dinheiro de volta para o país (Angola) sem pagarem qualquer imposto ou sofrerem alguma penalidade.
Em Angola, país que ainda não é um Estado de Direito e onde o poder judicial é permeável a pressões políticas, a questão que se coloca é: quem vai trazer de volta, voluntariamente, dinheiro do estrangeiro, sabendo que pode ficar sem ele?
Basta lembrar dois casos que temos tratado no Maka Angola, os de Lídia Amões e Chris Sugrue, para se perceber as debilidades na protecção da propriedade privada e do investimento em Angola. O que se tem num momento desaparece no momento seguinte… Não há segurança jurídica em Angola. E, sem ela, este tipo de medidas tem pouco impacto prático.
Acresce outro ponto fundamental: o facto de este tipo de medidas de “divulgação voluntária com amnistia” serem apenas parte de uma estratégia global e não um fim em si mesmo.
A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) reconhece as limitações dos programas de “divulgação voluntária”. No seu estudo “Voluntary Disclosure Programmes: A pathway to tax compliance”, 2015, p. 10, a organização internacional expressa claramente que este tipo de medidas têm de ser parte integrante de uma estratégia mais ampla, sendo necessariamente o fragmento de um grupo de várias acções que têm de ser tomadas pelos governos para incentivar os cidadãos a cumprir as suas obrigações.
E este é o ponto essencial. Esta legislação amnistiadora só tem sentido se ao mesmo tempo surgir uma legislação punitiva e incentivadora da acção daqueles que têm dinheiro no estrangeiro.
Essa legislação poder-se-á inspirar na lei norte-americana conhecida como RICO (Racketeer Influenced and Corrupt Organizations – Organizações Influenciadas por Corrupção e Extorsão). Esta lei tem uma parte criminal e uma parte civil, e destina-se a enquadrar e punir especialmente todas as pessoas e organizações que se dedicam a alta criminalidade, sobretudo de colarinho branco. Uma das medidas previstas na chamada RICO civil é obrigar aqueles que tenham obtido ganhos indevidos das suas actividades criminosas a devolver o triplo do que ganharam.
No caso de Angola, a amnistia proposta por João Lourenço (uma espécie de cenoura) tem de ter um outro lado (uma espécie de pau). Quem não repatriar capitais será investigado de acordo com a nova legislação e correrá o risco, não de ter de pagar alguns impostos com umas multas adicionais, mas de ter de pagar o triplo do que lhe for descoberto. O Estado tem de ter novos instrumentos legais para combater a impunidade financeira e coagir os cidadãos criminosos a cumprirem. Não basta dar-lhes um prémio e contar com a sua boa vontade, como faz esta lei.
Em resumo, a proposta de lei que aprova o regime especial de regularização tributária em Angola só tem sentido se for parte integrante de um mais amplo programa legislativo de combate à evasão fiscal, à fuga e ao branqueamento de capitais. Caso contrário, será uma pura amnistia sem qualquer efeito prático.