Santos da Casa Não Fazem Milagres
Não se lançaram foguetes, mas notou-se uma alegria geral após o anúncio do presidente vitalício José Eduardo dos Santos de que ia deixar a vida política activa em 2018 – ano em que completará 76 anos de vida e 39 no poder –, abandonando as funções de presidente de Angola e de líder do MPLA.
Ora, este anúncio não interessa para nada. Não interessa para nada, porque a única palavra que se devia ouvir do presidente era que ia iniciar um processo de transição para uma democracia real, com eleições livres e justas, instaurando um poder judiciário independente e imparcial. O resto não passa de intenções a prazo.
Há uma crise económica profunda no país. As unidades orçamentais, conforme sabemos, receberam instruções de que só deverão assumir compromissos e gastos referentes a 25% do que lhes foi atribuído no Orçamento Geral do Estado. O resto é para manter as aparências apenas do orçamento fictício.
Esta crise pode ser descrita nos seguintes termos: aqueles que detêm as armas, ou seja, as forças armadas do regime, bem como os agentes da autoridade encarregados da repressão quotidiana estão a passar fome, uma vez que têm os salários em atraso. Ora, isto é um perigo.
Esta crise também pode ser descrita por meio das paisagens de lixo e águas estagnadas em que se transformaram os bairros periféricos, ou do surto da febre-amarela que tem vindo a dizimar muitas vidas em Luanda (os números anunciados não são de fiar, tal como nunca o são as estatísticas oficiais). Há dias, José Van-Dúnem, anterior ministro da Saúde, recebeu uma vacina contra a febre-amarela para promover a campanha de vacinação contra a doença. A enfermeira não tinha sequer luvas quando aplicou a vacina ao ministro, e a fotografia foi amplamente comentada nas redes sociais. Já nem dinheiro para luvas há, o que significa que está posta em causa a adequada protecção do pessoal médico e dos utentes.
Os hospitais públicos transformaram-se em palcos da morte, pela falta de medicamentos e de profissionais da saúde, e pelas condições desumanas em que trabalham.
Os arranha-céus, na zona bonita da cidade, que foi construída para ser o cartão-de-visita da modernidade do regime, o Talatona com as casas milionárias em condomínios fechados, estão a ser tomados pelo fantasma da desocupação. Afinal, os estrangeiros, que deveriam ser os inquilinos, estão a abandonar Angola, porque já não há dinheiro, que era o que os alegrava. Também os ladrões do poder deixaram de comprar a preços absurdos, ou deixaram de construir. Cada um deles – e também as suas famílias, os amantes, os amigos e os gatos – não têm como ocupar as inúmeras propriedades que têm em seu nome. Não têm como alugar. É o fim da ilusão do novo-riquismo.
Alguns, como Luaty Beirão, já muito perspicazmente recordaram que em 2001 o presidente vitalício fez o mesmo anúncio, para depois ir ficando, e ficando, e ficando no poder.
Em 2012, Dos Santos fez passar a mensagem, sobretudo para que a comunidade internacional ouvisse, de que se retiraria a meio do mandato, ou seja, em 2015, e que tinha finalmente escolhido como sucessor Manuel Vicente.
Depois se descobriu que o seu vice-presidente tecnocrata e connoisseur dos vinhos franceses afinal sabia onde era Bordéus ou o Estoril, mas tinha deixado a Sonangol falida e confundira um magistrado português com um vendedor de caixas de vinho Château Mouton Rothschild, única razão para lhe ter transferido dinheiro (alegadamente, como dizem nos jornais).
A dúvida residirá apenas em quem será a vítima desta vez. Se for um ministro da Defesa, dirão daqui a uns tempos que andou a trocar balas por amendoins e, por isso, lá terá que ficar o presidente a presidir, mantendo-se, contra vontade, claro, no poder. Se for outro personagem qualquer, algum defeito há-de ter, e assim, qual Mobutu, lá será o presidente vitalício obrigado a ficar e ficar e ficar.
Só se vislumbra que o presidente vitalício se retire movido por duas circunstâncias. Caso o seu estado de saúde, cada vez mais debilitado, o impossibilite de continuar; ou caso o sucessor seja um dos seus filhos, aquele que ganhe as primárias em curso nas cortes de Luanda, Lisboa e outras capitais do Ocidente. Aí saberá que pode retirar-se descansado. Passa de presidente vitalício a presidente emérito ou rei-pai. Porque, neste caso, ninguém duvidará de que Angola passaria a ser uma monarquia. O embaixador-itinerante Luvualu seria chamado, mais uma vez, a explicar que o mesmo se passa nos Estados Unidos, onde os Bush pai e filho foram presidentes. Lá, houve eleições directas. A escolha foi do povo em eleições livres e justas. Em Angola, quem votaria no Zenú ou na Isabel se as eleições fossem livres e justas?
O que se passa é que o presidente está sem discurso, e encontrou a melhor forma de ganhar tempo e não prestar contas enquanto chefe do executivo e responsável pela crise causada em Angola pelo saque desenfreado dos cofres do Estado. A mensagem é clara. Ao anunciar a sua saída, ninguém deve aborrecê-lo nos próximos dois anos. Mesmo quando se apresentar como candidato às eleições de 2017, na qual nem o povo nem o Parlamento votam directamente para a eleição presidencial. É aquilo a que os teóricos do regime chamam constituição atípica.
Nesse jogo de fugir à responsabilidade quando as coisas correm mal, não há ditador mais cobarde que José Eduardo dos Santos. Só assume o que está bem. É a sua falta de coragem que o torna sempre mais perigoso nas jogadas de sobrevivência política e de reforço do seu poder pessoal. Desta vez, está feito.
Portanto, mais que do que estes jogos florais, se o presidente queria verdadeiramente anunciar a sua saída, tinha de referir com clareza quem seria o seu sucessor e não deixar criar uma nuvem de fantasia e especulação.
Mas, na realidade, tal não basta. Este já não é um tempo de truques de marketing ou sucessões dinásticas. É um tempo de mudança. E a inteligência do presidente vitalício tinha sido mais bem usada na congeminação de um plano de transição. Assim, estamos perante velhos truques estafados e rotos. Que cansam.
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