Estamos a um mês das eleições. Depois de 38 anos com José Eduardo dos Santos a ocupar o cargo de presidente-ditador de Angola, este é naturalmente um momento histórico.
As eleições são uma oportunidade para mobilizar e consciencializar os cidadãos angolanos. São um potencial ponto de viragem rumo a uma sociedade mais crítica e participativa, em que os cidadãos contribuam para construir um Estado de direito democrático.
O contexto político-militar
Enquanto a campanha decorre, vivemos num clima político-militar muito peculiar, com forças que pressionam para preservar os poderes e a corrupção no País.
Neste momento, temos um presidente que, segundo informações da família, passa a maior parte do seu tempo em Barcelona, a ver televisão. Ao que tudo indica, Dos Santos terá perdido a capacidade da fala, uma vez não se pronuncia publicamente desde finais de Abril passado.
Independentemente de todas as incapacidades que o aflijam em resultado da doença e/ou da idade, José Eduardo dos Santos mantém-se em funções. Em circunstâncias de saúde física e mental que desconhecemos (uma vez que deixou de falar em público), o presidente tem vindo a assinar decretos e a enviar propostas legislativas à Assembleia Nacional no sentido de acautelar o seu poder pós-presidencial, os interesses da sua família e do seu grupo de influência. O objectivo é simples: manter o Estado angolano refém do clã Dos Santos, Kopelipas e quejandos, bem como garantir que o próximo presidente seja uma simples marioneta ao seu dispor.
Não é de estranhar o recente distanciamento do Tribunal Constitucional em relação aos excessos presidenciais. O suicídio político de um homem em fim de carreira apenas arrasta os fanáticos e os que não conseguem sobreviver politicamente sem a sua protecção. Pela primeira vez, de forma clara e inequívoca, o Tribunal Constitucional decidiu que o presidente usurpou uma competência exclusiva da Assembleia Nacional e declarou a inconstitucionalidade do decreto presidencial sobre as ONGs.
Todavia, lembremos que o presidente do Tribunal Constitucional, Rui Ferreira, antigo assessor presidencial, tem o seu mandato expirado desde 2015. O mesmo se passa com o presidente do Tribunal de Contas, António Magalhães, cujo mandato terminou em 2008, e continua no cargo.
Temos um vice-presidente de Angola, o Manuel Vicente, que foi constituído réu em Portugal, por crimes de corrupção activa e branqueamento de capitais. Este réu é candidato a deputado do MPLA e não há qualquer esclarecimento sobre o assunto por parte do Tribunal Constitucional.
Temos um presidente da Assembleia Nacional, Fernando da Piedade Dias dos Santos “Nandó”, entretido a gastar 78 milhões de dólares na compra de viaturas para os deputados. Nandó é um “micheiro”. A dignidade dos dirigentes angolanos resume-se aos bens de luxo à sua disposição. Há muito perderam o conceito de servir a sociedade, os cidadãos que os legitimam, se alguma vez o tiveram. Não há um único deputado, nem mesmo da oposição, que em protesto tenha vindo a público afirmar que não receberá uma viatura que custa a escandalosa quantia de mais de 300 mil dólares.
E temos João Lourenço, o homem que o regime escolheu para suceder a José Eduardo dos Santos e para manter o statu quo. As contradições no discurso de João Lourenço avolumam-se. Se por um lado afirma que vai trabalhar em “perfeita harmonia” com José Eduardo dos Santos, ao mesmo tempo propagandeia que vai combater a corrupção. É como ser um polícia com a missão de combater a máfia e, ao mesmo tempo, afilhado de estimação do “padrinho”. Neste particular, das três, uma: João Lourenço está a enganar o eleitorado; está a enganar-se a si próprio; está a enganar o presidente José Eduardo dos Santos.
Sobre o seu posicionamento, há que não perder de vista que, enquanto ministro da Defesa, o general João Lourenço nada tem feito para garantir a dignificação dos soldados angolanos, que são a maior garantia de manutenção e segurança do poder do MPLA. Os soldados ganham 25 mil kwanzas por mês e são mantidos em condições de servidão sub-humana.
Com armamento à disposição, com generais multimilionários fortemente unidos entre si, dispondo de soldados servis e ignorantes, o exército ao serviço do MPLA pode parecer forte e firme. Mas as Forças Armadas Angolanas são uma espada de Dâmocles sobre a cabeça do regime, e sofrem de uma profunda desconexão entre a liderança e a base.
João Lourenço não é um homem de mudança, de ideias inovadoras, de coragem para servir os angolanos, mas um conservador do regime, empoderado para manter o MPLA como força de opressão e de saque.
Pelo meio, temos uma oposição com chefes que andam em bicos de pés para estarem bem com Deus e com o Diabo, com o povo e com o poder. Nem sequer aproveitam as redes sociais, onde sobretudo a juventude vai demonstrando cada vez mais sentido crítico, de partilha de informação e de denúncia das malfeitorias do regime, com um sentido de humor extraordinário.
Esse humor também tem superado a falta de visão e de liderança da oposição. Com tudo a seu favor para galvanizar a sociedade, para mostrar uma saída segura do actual inferno e conduzir o povo à liberdade, a oposição perde cada oportunidade.
O académico camaronês Achille Mbembe nota, no seu trabalho sobre o pós-colonialismo em África, como vários regimes africanos adoptaram uma série de políticas sociais que dão continuidade ao imaginário colonial. Esse imaginário assenta na “possibilidade de exercer um poder ilimitado sobre cada indivíduo”. A sua análise ajuda a compreender o modo como o MPLA e o seu líder se têm excedido na subjugação do seu próprio povo, desrespeitando-o e negando-lhe os seus direitos e liberdades.
Para manter a ordem e aumentar a provisão de mercadorias, o poder colonial subjugou os valores políticos, sociais e éticos à produção. Para garantir a supremacia da produção, os principais incentivos eram a violência e a corrupção, bem como uma série de punições para todo o tipo de ofensas, destinadas a garantir que o colonizado obedecia à estrutura de poder como “um escravo ao seu senhor”.
O MPLA adaptou essa visão colonial aos seus intentos e ao seu contexto. Querendo manter a ordem e o poder, dispensou a necessidade de produção, uma vez que o petróleo requer mão-de-obra mínima e representa hoje mais de 95 por cento das receitas em divisas. Enquanto o poder colonial saqueava para alimentar o império, o poder do MPLA saqueia para alimentar os seus dirigentes e os interesses estrangeiros que contribuem para a sua manutenção no poder, para o enriquecimento ilícito e a para a protecção dos bens roubados.
Temos dirigentes desumanos, temos um povo desumanizado, temos uma pobreza desumana. Temos um governo que actua como um gatuno armado, e uma população que actua como vítima fácil.
Então, o que mudará com as eleições?
O Contexto Económico
Generais Leopoldino do Nascimento, Kopelipa, Presidente JES, e Manuel Vicente, o quarteto que controla a economia política.
A seguir às eleições, provavelmente em Dezembro, o governo deverá proceder à desvalorização do kwanza e ao aumento do preço dos combustíveis. Haverá um aumento da inflação e um encarecimento dos bens essenciais. O poder de compra do cidadão comum baixará consideravelmente.
Por essa altura, devido à escassez de divisas para a importação, começarão a faltar novamente os bens de primeira necessidade. A situação económica agravar-se-á. Porquê?
O petróleo, a nossa maior riqueza natural e o motor da economia, está nas mãos da filha de José Eduardo dos Santos.
Há dias, Isabel dos Santos anunciou resultados tão positivos em seis meses de gestão, que pouco depois veio à superfície, nas redes sociais, a escassez de combustível nas províncias, particularmente em Huíla, Bié e Huambo, onde as pessoas tiveram de pernoitar junto às bombas de combustível para receberem um racionamento de cinco litros por pessoa.
Isabel dos Santos é tão competente a dirigir a Sonangol como a engajar-se em disputas de sanzala nas redes sociais. É aqui que a chamada princesa do saque passa grande parte do seu tempo a exibir sorrisos, a mostrar que trabalha através de fotos dos seus encontros tanto com celebridades como com executivos internacionais.
A situação da Sonangol é agravada pela falta de diversificação da economia do País. Os devedores do BPC são um bom exemplo de como os fundos públicos supostamente destinados a apoiar o empresariado nacional têm sido usados simplesmente para transformar proxenetas do MPLA – como Bento Kangamba, que recebeu um crédito de mais de 300 milhões de dólares – em multimilionários, sem que nada façam pela economia. Vejamos: Monteiro Kapunga, deputado do MPLA, , recebeu perto de 700 milhões de dólares em crédito do BPC! O que fez ele com o dinheiro? Certamente nunca o pagará ao banco e ainda renovará o seu mandato de deputado do MPLA; Elias Chimuco, também deputado do MPLA, recebeu um empréstimo de 435 milhões de dólares, sem que haja indícios de que os vá restituir. No entanto, Chimuco renovará o seu mandato de deputado.
São mais de cinco biliões de dólares – apenas do BPC – nos bolsos dos homens do MPLA e ninguém está preso, nem sequer há investigação. Pelo contrário, há ameaças de sanções criminais, mas contra quem tenha vazado a informação.
João Lourenço falou em coabitação perfeita com José Eduardo dos Santos, o que significa manter-lhe os filhos – respectivamente, Isabel dos Santos e José Filomeno dos Santos – como presidentes da Sonangol e do Fundo Soberano de Angola. José Filomeno, para além de ter desbaratado os cinco biliões do Fundo Soberano com o seu amigo Jean-Claude Bastos de Morais, também faz parte do saque do BPC, de onde levou 324 milhões de dólares.
A dita coabitação também significa manter os privilégios económicos da elite. Como sabemos, esses interesses dependem do saque, da corrupção e do controlo exclusivo da economia política, estrangulando qualquer ideia de diversificação económica e, consequentemente, de distribuição equitativa dos recursos nacionais.
A distribuição equitativa é tão importante quanto a diversificação. A África do Sul deve servir-nos de lição. Vinte e três anos depois do fim do apartheid, os dirigentes do ANC têm-se revelado incapazes de resolver a extrema iniquidade na distribuição da riqueza, envolvendo-se ou sendo cúmplices no aumento da corrupção nos mais elevados níveis do poder. Esse comportamento deu origem às maiores tensões sociais registadas nas últimas décadas, que têm sido evidenciadas com protestos estudantis sobre os serviços sociais e a luta contra a corrupção, sobretudo personificada no seu presidente Jacob Zuma.
Em Angola, as crescentes reivindicações no sector da justiça, que este mês conduziram a greves históricas no Tribunal Supremo e na Procuradoria-Geral da República, são apenas uma demonstração do que será o próximo ano.
Ou o novo presidente rompe imediatamente, após a tomada de poder, com a privatização do Estado efectuada por José Eduardo dos Santos, ou então terá de enfrentar as consequências da bancarrota do regime. Não haverá dinheiro para “acalmar” a profunda insatisfação económico-social dos cidadãos.
João Lourenço, que já sabe que vai ser o próximo presidente – tal é o valor das eleições! – tem de iniciar um processo célere de investigação e recuperação do património público nas mãos da família presidencial, Kopelipas, Vicentes e outros. Só assim dará sinais inequívocos de que haverá mudanças capazes de frenar o movimento de reivindicações que se avizinham dentro do próprio regime.
É esta a prova de fogo da liderança de João Lourenço: recuperar o património público roubado aos angolanos. Não interessam os discursos para agradar ao povo e aos americanos. Como diziam os velhos romanos, facta, non verba. Factos, não palavras.
É preciso aproveitar este momento histórico. As mudanças em Angola passam por uma maior assunção da responsabilidade individual de cada angolano perante o Estado. O Estado somos todos nós. O regime é o MPLA, o governo é do MPLA, a oposição é a UNITA, CASA-CE, FNLA, PRS e outros partidos, mas o Estado é a soma integral de todos os angolanos. É a soma maior da vontade dos angolanos que poderá mudar o curso da nossa história.
O futuro de Angola não depende da eleição de João Lourenço, Samakuva ou Chivukuvuku, mas da vontade de todos os angolanos, e passa por uma maior reivindicação dos direitos de cidadania e pelo exercício pleno dos correspondentes deveres.
Todos, um mais um, têm de exercer os seus direitos nas repartições, nos tribunais, nos ministérios, nas esquadras de polícia, nas ruas, no campo e na cidade.
Basta de miséria, basta de exploração, basta de mentiras.
É tempo do grito do Ipiranga angolano: “Liberdade e Vida!”