A Cruz Vermelha de Angola (CVA) atravessa actualmente a sua pior crise de sempre. Várias fontes contaram ao Maka Angola que o autoritarismo, a corrupção e a má gestão têm estado a destruir essa instituição de utilidade pública. As denúncias de alegados casos de peculato, de desfalque e de desvio de fundos são ignoradas, enquanto os secretariados provinciais não dispõem de recursos básicos para o seu funcionamento e os salários não são pagos há mais de sete meses.
A presidente da CVA é a bilionária Isabel dos Santos, filha do presidente da República. Quando foi eleita, em 2006, para dirigir a organização humanitária com cerca de 140 funcionários, a empresária anunciou o seu compromisso com a boa governação.
“Os recursos limitados para fazer face à grandeza da nossa tarefa tornam a nossa acção delicada e obrigam-nos a optimizar, a gerir com maior rigor e a adoptar os princípios da boa governação. É importante termos uma gestão transparente e credível”, disse, na altura, Isabel dos Santos.
Mas será que ela faz o que diz? Em Junho passado, quando o seu pai a nomeou como presidente do Conselho de Administração da Sonangol, a mensagem de Isabel foi muito semelhante, tendo reiterado o seu compromisso com a boa governação.
Sem salários
Infelizmente, o seu modelo de gestão de instituições públicas é desastroso. O Maka Angola tem conhecimento de que 16 secretariados provinciais da CVA entram agora no sétimo mês sem salários, enquanto dois outros vão no nono mês.
Um dos secretários provinciais explica que, “na questão dos salários, recebemos do Orçamento Geral do Estado. Deveríamos ter beneficiado de todos os incrementos que o governo fez, mas isso não aconteceu”. “Mesmo quando somos pagos, recebemos de acordo com as tabelas salariais desajustadas de 2008”, reforça o interlocutor.
Esta informação é confirmada por vários secretários provinciais, que aceitaram falar para o Maka Angola, apenas sob condição de anonimato, por receio de represálias. Um segundo secretário provincial explica que “até 2006, as províncias tinham dotação orçamental trimestral para despesas correntes e atividades sociais. Infelizmente, desde que a engenheira Isabel dos Santos assumiu funções, nesse ano, deixámos de receber um tostão de dotação orçamental. São os secretários provinciais que têm de tirar do seu bolso para cobrir as despesas correntes”.
Outro secretário provincial, sublinhando os riscos que os denunciantes correm, revela que, na prática, a CVA “deixou de receber doações internacionais porque os doadores dizem que a nossa presidente é magnata e pode cobrir certas despesas. Outros dizem que a gestão de fundos na CVA não é transparente”.
As Galas de Isabel
Durante a sua gestão, Isabel dos Santos realizou galas de luxo para angariação de fundos para a CVA, trazendo a Luanda cantores famosos como Mariah Carey, John Legend e Craig David.
“Infelizmente, não sabemos para onde vai o dinheiro das galas da CVA. Nós, os secretários provinciais e membros do Conselho Nacional, nunca fomos convidados ou informados sobre esse tipo de actividades”, sublinha um terceiro secretário provincial.
No relatório anual de 2011, por exemplo, em posse do Maka Angola, a direcção financeira da CVA refere que “os proveitos da gala não podem ser determinados, porque a gestão directa do projecto é da responsabilidade da presidente da CVA [Isabel dos Santos]”.
A família presidencial e a cantora Mariah Carey na Gala da CVA, em 2013.
Isabel antidemocrática
As várias fontes internas contactadas por este portal queixam-se também de que Isabel dos Santos tem ignorado os estatutos da organização, os quais estabelecem a realização periódica de eleições, de quatro em quatro anos, para a presidência e os corpos directivos.
Isabel dos Santos não convoca eleições desde 2010.
“Como decorre dos artigos 29 e 31 dos Estatutos da Cruz Vermelha Angolana, compete ao presidente da Assembleia-Geral convocar as eleições para presidente da CVA. Ora, pelos mesmos estatutos, o presidente da Assembleia-Geral é o presidente da CVA; portanto, é Isabel dos Santos que tem de convocar a Assembleia-Geral para a sua substituição”, refere o analista jurídico do Maka Angola.
O Maka Angola enviou uma mensagem por e-mail ao secretário-geral da CVA, Valter Quifica, para obter a sua versão oficial sobre as alegações deste texto e o facto de não se realizarem eleições desde 2010. Não obteve qualquer resposta.
O silêncio não é surpreendente. Valter Quifica é alvo de um inquérito por alegados desvios de fundos. Em 2014, os secretários provinciais apresentaram uma queixa ao procurador da República junto da Direcção Nacional de Investigação e Inspecção das Actividades Económicas (Polícia Económica) sobre alegados desvios de fundos na organização. Na queixa, assinada pelo representante da CVA no Bengo, Baltazar Pedro, são identificadas e corroboradas por documentos várias transferências das contas da CVA para a conta pessoal do secretário-geral da organização, Valter Quifica. Na queixa, acusa-se o gestor de se ter “apoderado dos fundos da instituição, e reiteradas vezes afirmado não haver dinheiro para pagamento de salários”. “Como pode haver dinheiro se este mesmo dinheiro sua Excia. Secretário-geral coloca-o na sua conta?”, lê-se.
A Polícia Económica procedeu à abertura de um inquérito com o número 269, que segue agora os seus trâmites. Entretanto, nada parece ter acontecido durante este período, e Valter Quifica mantém-se de pedra e cal no seu posto.
Uma batata quente
Pela sensibilidade política que o poder de Isabel dos Santos causa, os representantes provinciais aguardaram durante um ano, e só depois recorreram ao partido no poder para “melhor orientação estratégica do MPLA sobre a vida interna da Cruz Vermelha de Angola”.
A 7 de Agosto de 2015, os membros da comissão representativa das províncias dirigiram-se a Roberto de Almeida, então vice-presidente do MPLA, a quem expuseram a grave situação de má gestão, descontrolo e paralisia da CVA sob a liderança da empresária Isabel dos Santos. Subscreveram o documento os secretários do Bengo, Kwanza-Sul e Kwanza-Norte, a saber, Baltazar Pedro, Carlos Alberto da Silva e Salvador João Zumba.
No longo relatório, estes detractores referem-se às irregularidades financeiras detectadas na gestão corrente do secretário-geral Valter Quifica e solicitam a sua exoneração. Para além de um encontro directo anterior com o secretário-geral do MPLA, Dino Matross, os peticionários não receberam qualquer resposta.
Entretanto, Valter Quifica emitiu uma circular em que proíbe a entrada dos secretários provinciais na sede nacional da CVA em Luanda sem a sua autorização, apenas a concedendo, entre os 18 secretários, aos secretários da Huíla e do Moxico, com quem mantém boas relações.
Excluídos
As províncias estão, desse modo, isoladas da sede da CVA. “Desde 2006, nunca tivemos uma reunião com o secretário-geral, excepto duas vezes, por força de seminários com doadores. Nas visitas-relâmpago que realiza às províncias, porta-se como um estranho general. Vistoria as casas de banho e folhas de salário, sem sequer permitir que nos sentemos para uma breve discussão, e vai-se embora”, denuncia um dos secretários provinciais.
Os visados interrogam-se: “Porque razão a presidente não exonera o homem que não sabe fazer nada e realiza eleições?”
Os secretários provinciais acusam a actual da CVA de se ter tornado incapaz de realizar projectos sociais como recolha de sangue, mobilização social sobre doenças endémicas como o HIV/SIDA, diarreias e doenças respiratórias. Queixam-se também de que “não temos como mobilizar e fazer deslocar voluntários para a prevenção da febre-amarela e da malária”.
Um dos membros do Conselho Executivo, sob condição de anonimato, admite que a CVA precisa desesperadamente de uma mudança de direcção. “Nem sequer nos dão trabalho para fazer”, diz. “Queremos a saída da direcção que nos dirige desde 2006, porque está a destruir a CVA”, conclui.
“O actual secretário-geral era apenas o contabilista da CVA, a quem Isabel dos Santos nomeou provisoriamente para dirigir o dia-a-dia da organização por alguns meses, para dar tempo de avaliar candidaturas ao cargo. Mas ela deixou-o lá ficar até hoje, sem nunca lhe ter conferido posse”, lamenta um secretário provincial.
O analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, resume o caso: “Todas as actividades da CVA estão sujeitas à superintendência e vigilância da presidente nacional, que assume, por isso, funções de natureza executiva e não meramente honoríficas.”
“Todas as irregularidades que ocorrem a nível nacional na CVA têm como principal responsável hierárquico a presidente da CVA, Isabel dos Santos, que, no mínimo, tem de saber o que anda a fazer o seu secretário-geral”, conclui.
Na sua função, Isabel dos Santos beneficia de um poderoso conselho da Cruz Vermelha de Angola: o presidente honorário é o seu pai, o presidente da República José Eduardo dos Santos; compõem ainda o conselho a primeira-dama Ana Paula dos Santos; a antiga ministra do planeamento e ex-directora executiva no Conselho de Administração do Banco Mundial, Ana Dias Lourenço; as ministras do Ambiente e Cultura, Fátima Jardim e Carolina Cerqueira; o governador de Benguela, Isaac dos Anjos ; o juiz conselheiro do Tribunal de Contas, Aniceto Aragão; e o presidente da CASA-CE, Abel Chivukuvuku, entre outros.
Se Isabel dos Santos, com toda a capacidade de gestão de que se gaba, consegue destruir uma instituição de utilidade pública como a Cruz Vermelha de Angola, que futuro se espera da Sonangol sob a sua liderança?