PRESIDENTE APROVA “ELECTRICIDADE-FANTASMA” PARA CABINDA
Um banco, sem nenhuma agência além da sede, aloja no seu escritório uma empresa-fantasma. O presidente da República atribui a essa entidade-fantasma uma concessão para construir e operar uma Central Termoeléctrica, que deverá custar mais de 200 milhões de dólares.
Foi precisamente isto que aconteceu com o Decreto Presidencial n.º 25/17, de 17 de Fevereiro passado, através do qual José Eduardo dos Santos atribuiu à Vavita Power S.A. a concessão no regime de construção, operação e transmissão para instalação da Central Termoeléctrica BI-Combustível de 100 Megawatts, em Cabinda. A concessão é válida por 25 anos renováveis.
De acordo com o decreto presidencial, a energia futuramente produzida tem a garantia de compra através de um CAE (Contrato de Aquisição de Energia) pela RNT (Rede Nacional de Transporte) E.P.
Apesar de o decreto presidencial não especificar o valor do projecto, há termos comparativos. Por exemplo, a Rectificação n.º 7/15 ao Despacho Presidencial n.º 225/14, de 27 de Novembro, aprovou o projecto de emergência para “o aumento da capacidade de geração termoeléctrica de Malembo, em Cabinda, para 95 Megawatts, avaliado em 164 milhões de dólares. A central foi inaugurada em 2012, com um custo de 91.8 milhões euros (equivalente a 98.5 milhões de dólares ao câmbio actual) e uma capacidade de produção de 35 Megawatts, em cada uma das duas turbinas com um sistema duplo (diesel e gás)”. Portanto, em cinco anos, para produzir 95 Megawatts, em Malembo, o governo já gastou mais de 262.5 milhões de dólares.
Onde está o gato?
Primeiro, o que é a Vavita Power S.A.? Esta sociedade anónima foi estabelecida a 24 de Setembro de 2015, tendo como objecto social “a prestação de serviços de gestão e consultoria, estudos de mercado, promoção imobiliária, compra e venda de imóveis”. Nada no seu objecto social indicava qualquer apetência específica pela electricidade ou construção de centrais térmicas.
Entretanto, pouco mais de um ano após a sua constituição e sem qualquer registo de actividade que seja do conhecimento público, a Vavita procedeu à alteração do seu objecto social. Na segunda escritura, lavrada a 5 de Dezembro de 2016, a empresa passa a chamar-se Vavita Power [Electricidade] S.A. e introduz no seu objecto social a produção de electricidade e actividades conexas. Isto é, dois meses antes de ser emitido o Decreto Presidencial de Fevereiro de 2017, esta empresa, que nada tinha a ver com electricidade, passa a dedicar-se ao sector termoeléctrico.
Passados dois meses da alteração dos estatutos da empresa-fantasma, o presidente atribui-lhe a concessão da Central Termoeléctrica BI-Combustível de 100 Megawatts.
O gato escondido
O gato esconde-se no endereço da sede da empresa: Avenida Comandante Gika, n.º 150, em Luanda. Trata-se nem mais nem menos do que o endereço do Banco Kwanza Invest (BKI), criado por José Filomeno dos Santos, actual presidente do Fundo Soberano e filho do presidente da República. Actualmente, o sócio maioritário nominal do BKI, com 85 por cento do capital, é o seu sócio e mentor Jean-Claude Bastos de Morais.
Este mesmo endereço também serviu de sede para a Kijinga S.A., a empresa-fantasma usada em 2015 para desviar US$ 100 milhões de dólares do Fundo Soberano para uma conta domiciliada no BKI.
Através do escritório de advogados e de gestão de reputação de imagem Schillings, baseado em Inglaterra, Jean-Claude Bastos negou ter qualquer participação na Vavita Power S.A.
A 3 de Abril, a Schillings informou que, no presente momento, Jean-Claude Bastos de Morais não tem pessoalmente qualquer interesse ou participação nesta empresa, embora esteja ciente do projecto.
Mais tarde, a 13 de Abril, a Schillings, em nova resposta, declarou o seguinte: “Deixámos claro na nossa anterior carta que o nosso cliente não tem qualquer participação na Vavita Power S.A., nem directamente nem indirectamente.” Na mesma comunicação, acrescentam que, a existir, qualquer documento que comprove que Jean-Claude é sócio da Vavita é falso.
A 20 de Abril, depois de confrontada com a necessidade de fornecer uma prova cabal de que Jean-Claude não tinha qualquer interesse no capital da Vavita, a Schillings reiterou que o cliente não é accionista da Vavita Power S.A., acrescentando que, sendo o Maka Angola a alegar que Jean-Claude é accionista da Vavita, seria sua a tarefa de provar essa qualidade. Por uma questão de princípio, declararam então, Jean-Claude não tinha de provar o contrário.
Finalmente, a 23 de Abril, a Schillings fez saber: “Tivemos a oportunidade de receber instruções do nosso cliente [Jean-Claude Bastos de Morais] sobre a terceira questão do vosso e-mail de 7 de Abril de 2017, e confirmar que não há qualquer relação entre a Vavita e o Banco Kwanza Invest.”
Quem são os seis sócios nominais da Vavita Power S.A., e que ligações têm ao BKI, a Jean-Claude Bastos de Morais e a Cabinda?
1. Manuela Ganga, de nacionalidade suíça, é actualmente directora-geral da empresa suíça Uniqua Consulting Gmbh, que, com o universo de empresas de Jean-Claude Bastos de Morais, presta “consultoria” ao Fundo Soberano de Angola e, em 2014, recebeu 5.8 milhões de dólares pela “consultoria” nesse mesmo ano. Também é directora-geral da Fábrica de Sabão no Cazenga, em Luanda, um projecto social idealizado por Jean-Claude Bastos de Morais e apadrinhado pelo Fundo Soberano de Angola. Manuela Ganga foi também secretária do Conselho de Administração do Banco Kwanza Invest, funcionária da empresa Quantum Global e secretária pessoal de Jean-Claude Bastos de Morais. É companheira de Jean-Claude Bastos de Morais, com quem tem um filho.
2. Júlia Germana Bastos é prima directa de Jean-Claude Bastos de Morais e funcionária da Chevron, que opera em Cabinda.
3. Catarina Isabel Froufe Gomes da Costa, cidadã portuguesa, é a jurista colocada no chamado “family office” de Jean-Claude Bastos de Morais, que controla todos os seus negócios em Angola, e também funciona na Avenida Comandante Gika, n.º 150, a sede do Banco Kwanza Invest.
4. Gilberto de Jesus Cabral Pires é sócio de Jean-Claude Bastos de Morais e José Filomeno dos Santos na Benguela Development S.A., uma das beneficiárias do Fundo Soberano de Angola, dirigido pelo último sócio. O trio detém outras sociedades em conjunto.
5. Manuel Nunes Barata é assessor do secretário provincial do Ordenamento do Território, Urbanismo e Ambiente de Cabinda. É assessor para as Relações Institucioniais da Caioporto e membro da comissão de acompanhamento das obras do Porto de Caio, atribuída a Jean-Claude Bastos de Morais, como adiante se explica. Barata é tio de Jean-Claude Bastos de Morais.
6. Margarida Buca Quinta é amiga pessoal de Manuela Ganga e ex-funcionária do Banco Kwanza Invest.
Analisemos agora a argamassa que liga a estrutura accionista da Vavita Power S.A. a Jean-Claude Bastos de Morais. Três dos sócios nominais — Gilberto de Jesus Cabral Pires, Júlia Germana Bastos e Margarida Buca Quinta — são sócios de Jean-Claude Bastos de Morais na empresa Caioporto, onde formam o número mínimo necessário para constituir sociedade anónima, cada um com 0,025 por cento das acções. A outra sócia nominal da Caioporto, com 0,025 por cento, é a jurista Joana Filipe Lima da Silva Simplício de Oliveira, de nacionalidade portuguesa, que é praticamente a responsável pelas questões jurídicas do chamado “family office” de Jean-Claude Bastos de Morais, na sede do Banco Kwanza Invest e, por conseguinte, supervisora de Catarina Isabel Froufe Gomes da Costa.
E qual é a ligação entre o Caioporto e a Vavita? Primeiro, ambas foram criadas tendo como sede o mesmo endereço: Avenida Comandante Gika, n.º150, Luanda. Repetindo, é o mesmo endereço do Banco Kwanza Invest.
Segundo, o decreto presidencial é esclarecedor. Atribui a concessão de construção da termoeléctrica em função da entrada em funcionamento do Pólo Industrial de Fútila e do Porto de Caio, que o presidente prevê para 2017. E o projecto é aprovado “tendo em conta a imperiosidade de um aumento da capacidade de produção e oferta de energia eléctrica à província de Cabinda”.
É a Jean-Claude Bastos de Morais que o presidente José Eduardo dos Santos atribuiu também, em 2012, a construção e concessão, por 60 anos, de um porto de águas profundas em Cabinda. Através da empresa-fantasma Caioporto S.A., detida por si em 99.9 por cento, Jean-Claude Bastos de Morais obteve a concessão, com a promessa de que o futuro investimento seria totalmente privado.
Em Dezembro passado, José Eduardo dos Santos deu cobertura à incapacidade da Caioporto S.A. através do Decreto Presidencial n.º 238/16, segundo o qual o Estado passou a ser o financiador da construção do porto. Basicamente, o Estado assumiu o investimento de 85 por cento dos US$ 831 milhões, através da sua inclusão numa linha de crédito concedida pela China.
Como é possível Jean-Claude Bastos de Morais nada ter a ver, directa ou indirectamente, com a Vavita?
O presidente é a lei!
O decreto presidencial indica claramente que a adjudicação da obra e concessão de gestão da central termoeléctrica em Cabinda não obedeceu a qualquer concurso público.
Qualquer contratação efectuada pelo Estado está sujeita à Lei da Contratação Pública. “Essa lei estabelece que a contratação pública, designadamente as concessões, está sujeita a procedimentos formais com vista a assegurar a transparência, igualdade e concorrência nas ofertas, e assim melhorar a procura do interesse público”, refere o analista jurídico Rui Verde.
Entretanto, a Schillings esclarece que o seu cliente “acredita que todos os procedimentos legais foram cumpridos e não tem conhecimento de qualquer irregularidade”. Afirma também que Jean-Claude Bastos de Morais acredita que a Vavita “tem toda a competência e capacidade para executar as tarefas com que se confronta”.
Por sua vez, Rui Verde reitera que “o decreto presidencial pura e simplesmente ignora a Lei da Contratação Pública. Desse modo, a concessão é ilegal”.
De acordo com o jurista, a Lei da Contratação Pública reconhece a aplicação de leis especiais em casos como o da electricidade.
No seu decreto, José Eduardo dos Santos recorre à Lei Geral da Electricidade. No artigo 18.º n.º 2, a referida lei determina que “a adjudicação das concessões é precedida de concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, realizados nos termos da legislação aplicável”. Também esse articulado foi descartado pelo presidente.
Curiosamente, nota o jurista, “o próprio decreto presidencial menciona o artigo 18.º, n.º 1”. Segundo esse artigo: “a aprovação das concessões, bem como a sua atribuição são da competência do Titular do Poder Executivo“.
“Dá vontade de rir. O decreto menciona a primeira parte do artigo e ‘esquece-se’ da segunda parte. Sim, o presidente tem o poder de aprovar as concessões, mas a sua adjudicação tem de obedecer a um concurso público. A lei é muito clara”, afirma Rui Verde.
A intricada teia de interesses comerciais tecida pelo presidente, a sua família, amigos e parceiros de negócios destina-se, especificamente, a encobrir os verdadeiros proprietários das empresas envolvidas no saque desenfreado de Angola. É só juntar as pontas soltas.