Os guerrilheiros não são terroristas
Esclareceu o Presidente português que “as autoridades de Angola estão informadas e sabem que, nos termos da Constituição Portuguesa, os nossos tribunais gozam de independência. Agora não podemos é permitir que as instituições portuguesas possam ser usadas como instrumentos da luta política em Angola”.
O recado à Procuradoria-Geral da República, embora não assumido, parece claro: devem ser desconsideradas as denúncias criminais contra dirigentes angolanos, quando a sua promoção tenha origem em cidadãos angolanos, para não permitir que a Justiça portuguesa seja instrumentalizada ao serviço de qualquer dos intervenientes na luta politica interna de Angola. Qualquer pessoa, minimamente informada sobre estas realidades, não pode deixar de pensar imediatamente em Rafael Marques, o jornalista e activista dos direitos humanos que tão incómodo se tem revelado para o poder politico em Angola.
Rafael Marques ainda há pouco mais de um mês recebeu, em Berlim, o Prémio Integrity, atribuído pela Transparency International, justificado pelo "trabalho incansável e corajoso na investigação e denúncia de casos de corrupção em Angola", tarefa que, recorde-se, já lhe valeu diversas estadias nas prisões angolanas.
É evidente que, ao apresentar ou acompanhar queixas criminais em Portugal contra actuações de dirigentes angolanos, Rafael Marques está a travar o seu combate político angolano. Mas também parece evidente que tal facto deve ser irrelevante para as autoridades portuguesas, que só têm de decidir se são competentes ou não para investigar os crimes denunciados e, em caso afirmativo, de obedecer a critérios de objectividade e de legalidade na condução das investigações e na análise das provas apuradas.
Sucede que, nesta complexa sociedade globalizada em que vivemos, as fronteiras entre os países são, cada vez mais, ficções, ao mesmo tempo que se assiste a um brutal reforço do poder dos Estados, em detrimento dos direitos dos cidadãos. A actuação de pessoas como Rafael Marques ou Edward Snowden ou, ainda, Julian Assange é, assim, cada vez mais essencial para garantir espaços de liberdade, para além daqueles que os omnipotentes e omniscientes Estados entendem dever conceder aos cidadãos.
Estas personagens são verdadeiros guerrilheiros globais, mas não podem ser confundidos com terroristas. Não utilizam tácticas de destruição, mas de desocultação. Permitem-nos conhecer aquilo que nos é vedado saber, nacional ou internacionalmente. E mesmo quando, perante a evidência da importância e gravidade daquilo que revelam, os Estados se vêem obrigados a reconhecer as ilegalidades e arbitrariedade praticadas, nem por isso deixam de perseguir e de tentar silenciar estes cavaleiros andantes da nossa época digital.
Em Inglaterra, o comportamento do primeiro-ministro, David Cameron, tentando silenciar o jornal The Guardian, que tem vindo a revelar as informações coligidas por Edward Snowden, a que se veio somar um intimidatório inquérito parlamentar, permite-nos perceber que o facto de um regime ser democrático não garante o respeito dos direitos dos seus cidadãos ou de cidadãos estrangeiros, nomeadamente no que concerne ao direito à privacidade ou à informação quando confrontados com os interesses do Estado definidos de uma forma secreta e, quantas vezes, ilegítima, por meia dúzia de pessoas que dirigem o poder politico executivo em cada Estado ou mesmo um mero departamento ou organização estatal.
Vivemos numa época em que por causa da necessidade da luta contra o terrorismo, as possibilidades tecnológicas, a complexidade e falta de transparência do poder, os pantagruélicos interesses económicos e a inevitável natureza humana levam os Estados, democráticos ou não, a assumir comportamentos profundamente violadores dos direitos humanos, quando não terroristas.
Acresce que, a par e passo com estes novos domínios onde o poder do Estado passou a ser exercido de forma desmesurada, continuam a existir as mesmas práticas de há séculos no que respeita à definição e defesa de interesses vitais dos Estados, nomeadamente territoriais, independentemente da vontade ou desejos dos cidadãos.
No Egipto, a realidade veio demonstrar o acerto das posições radicais: aos partidos islâmicos, não vale a pena jogar no terreno da democracia porque, mesmo que democraticamente eleitos, serão afastados manu militari do poder, com a conivência dos Estados democráticos. E na Ucrânia, por maiores que sejam as manifestações, é evidente que a Rússia não permitirá grandes veleidades.
Abençoados sejam, assim, os Assanges, os Snowdens, os Marques.
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